Chipre, a “Moscovo do Mediterrâneo”, prepara-se para tempos difíceis
A ilha mediterrânica enfrenta um dilema: sabe por experiência própria o que é ser invadido por um país estrangeiro e apoiou as sanções europeias contra a Rússia. Mas também sabe a falta que os russos lhe vão fazer.
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Moscovo e Nicósia estão à distância de uma viagem aérea de apenas três horas. Todos os anos, centenas de milhares de russos embarcam nesse trajecto para aproveitar o sol e a água quente das praias mediterrânicas, fazer compras e deixar em Chipre uma grande quantidade de dinheiro.
O início da guerra na Ucrânia deixou a ilha a pensar se este não será em breve um mero relato do passado. Chipre conhece bem a sensação de ter um país estrangeiro a ocupar-lhe uma parte do território (e não é pequena), mas a importância da Rússia na sua economia faz temer um futuro problemático se o conflito não terminar brevemente.
Nesta segunda-feira, a agência de notação financeira DBRS calculou que o PIB de Chipre poderá encolher entre 1,5% e 2% em 2022 se se mantiver até ao fim do ano o encerramento do espaço aéreo da União Europeia à aviação russa e da Rússia aos voos com origem nos 27. Mesmo que essas proibições sejam levantadas entretanto, “o fluxo de turistas russos em Chipre deverá ser seriamente afectado pelo impacto maciço das sanções na moeda russa e na sua economia”, alertou a agência.
“É um grande, grande golpe. Se as coisas não melhorarem até ao Verão, vai ser um ano muito mau para Chipre”, comenta ao PÚBLICO o ex-governador do Banco Central de Chipre Panicos Demetriades, que tem dificuldade em compreender qual é o intuito de certas sanções. “Não vejo a lógica de impedir russos normais de viajarem. Estão a sancionar Putin com isto? Sancionar os oligarcas, absolutamente! Vão atrás do dinheiro deles, como estão a fazer no Reino Unido. Punir as pessoas normais e punir países europeus como Chipre é que não faz sentido nenhum”, defende o também professor universitário em Leicester.
Os russos representam cerca de 25% do mercado turístico cipriota, apenas ultrapassados pelos britânicos. Ao contrário destes, porém, gastam muito mais dinheiro nas férias, e em cidades como Limassol desenvolveram-se muitos negócios de luxo a pensar em quem visita e na comunidade russa com mais de 25 mil pessoas que tem habitação permanente na ilha.
Mas as ligações entre Chipre e a Rússia não se resumem ao turismo nem são um acontecimento recente. Depois da queda da União Soviética, muitos empresários russos foram atraídos à ilha mediterrânica pelos baixos impostos e por um esforço político cipriota em fortalecer o pequeno país, que tem como vizinho a grande Turquia. A entrada de Chipre na União Europeia, em 2004, não alterou substancialmente essa realidade e o país continuou a ser um destino preferencial para o investimento russo. Quase metade dos 3500 “vistos gold” emitidos por Chipre até ao cancelamento deste programa em 2020, envolto em vários escândalos, foi para cidadãos russos. Uma reportagem do Financial Times chamou-lhe a “Moscovo do Mediterrâneo”.
“Há muito menos investimento russo hoje do que há dez anos”, garante ao PÚBLICO o presidente do Center for European and International Affairs da Universidade de Nicósia, Andreas Theophanous. “A economia tem progredido gradualmente, nos últimos anos, para um desenvolvimento mais equilibrado e correcto. Muito já se fez, muito continua por fazer”, avalia.
“O dinheiro russo não tem um destino maior no Mediterrâneo do que Chipre”, escreveu no ano passado o Carnegie Endowment for International Peace, um think tank norte-americano. “Segundo dados do Banco da Rússia, em 2019 o investimento directo no estrangeiro da Rússia em Chipre foi 50% de todo o investimento directo estrangeiro a nível global.”
“Os turistas russos vão para a Turquia — é isso que vocês querem?”
Consciente do impacto que terá o fecho da torneira russa, o Governo cipriota anunciou a criação de dois comités para monitorizar a situação em permanência e decidiu lançar um plano para atrair mais turistas europeus e do Médio Oriente. “A nossa economia é desproporcionalmente afectada face a outros países, devido à sua estrutura e à dependência dos turistas russos”, admitiu o ministro das Finanças, Constantinos Petrides, ao Politico. “O que interessa é a duração da crise. Se acabar dentro de um mês, sairemos ilesos. Se durar mais, nenhuma economia sairá bem”, alertou.
É também essa a percepção de Andreas Theophanous, que prefere falar do impacto europeu do que apenas do efeito em Chipre. “Gostava que tivessem sido dados passos antes da guerra para que agora não tivéssemos esta confusão, que é uma tragédia”, desabafa ao PÚBLICO. “O pior cenário possível seria uma escalada e a continuação das batalhas, que seria muito mau para a Ucrânia, muito mau para a Rússia e muito mau para a Europa como um todo”, diz o docente universitário, prevendo uma estagflação generalizada. Isto é, uma estagnação da economia combinada com uma inflação galopante.
Michalis Sarris, antigo ministro das Finanças que negociou com a UE e o FMI o pacote de resgate em 2013, diz por escrito ao PÚBLICO que “a maior parte do impacto negativo será no turismo [cipriota]” e que as chegadas de russos e ucranianos “não serão facilmente substituídas” devido “à recessão que se espera na Europa”.
E quando se fala em turismo não é apenas de hotéis e restaurantes: “Serão afectados serviços bancários, contabilísticos e jurídicos, que tradicionalmente têm uma forte clientela russa, e a construção, uma vez que os potenciais compradores não poderão transferir fundos. Estes três sectores representam cerca de 60% do PIB”, acrescenta Sarris.
Para Panicos Demetriades, as sanções podem ser contraproducentes. “Se os russos não podem vir a Chipre, o que é que fazem? Vão ao mar Negro de férias, e o dinheiro fica na Rússia, ou vão à Turquia. O dano para a Europa é maior do que o dano para Putin”, comenta. Um argumento semelhante foi usado pelo embaixador russo em Nicósia em entrevista a uma televisão. “Aonde é que Chipre vai buscar os seus turistas russos? Eles não virão. E vão para onde? Para a Turquia – é isso que vocês querem?”
Ucrânia é um novo Chipre?
Há uma razão forte para que os cipriotas se solidarizem com os ucranianos. Em 1974, com o pretexto de defender a população de origem turca, a Turquia invadiu o país e apoiou a formação de um Estado independente que só Ancara reconhece. É 37% do território da ilha – e esse valor está bem presente no discurso dos académicos ouvidos pelo PÚBLICO.
“A maioria da população apoia as sanções, é uma questão de princípio. Houve uma invasão, que é algo que os cipriotas conhecem por experiência própria e não aceitam. Claro que toda a gente entende que isto vai ter um impacto grande em Chipre, mas era algo que precisava de ser feito”, defende Constantinos Adamides, que lecciona Ciência Política em Nicósia. “Para Chipre, este é um assunto muito importante e extremamente sensível. Houve apenas um número muito, muito pequeno de pessoas que se opuseram [às sanções]. Este foi um daqueles momentos muito raros em que todos os partidos políticos tiveram uma abordagem unânime a um assunto.”
Por entre a solidariedade também surgiram alguns ecos de descontentamento, relata o docente. “Há muitas comparações e uma das coisas que as pessoas estão a dizer é: onde é que estava a comunidade internacional quando a Turquia violou a soberania de Chipre e nos invadiu? Isto não é oposição às sanções contra a Rússia, mas um desejo de que a comunidade internacional mostre uma sensibilidade semelhante para com o caso cipriota, especialmente tendo em conta o quanto vamos ser afectados económica e até politicamente. Esperamos que a comunidade internacional olhe para o nosso caso e perceba que não tem sido tratado da mesma forma.”