Reacções à morte de Jorge Silva Melo (1948-2022): “É como se tivesse ardido a nossa mais esplêndida biblioteca”

Várias personalidades do mundo cultural e da política têm, desde ontem, lamentado ao PÚBLICO e nas redes sociais a morte do encenador, cineasta e fundador do Teatro da Cornucópia e dos Artistas Unidos, figura crucial da cultura portuguesa.

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Jorge Silva Melo em 2020 rui gaudencio

“Devia ter honras de Estado”

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“Devia ter honras de Estado”

“Jorge Silva Melo — um grande amigo, um Pai e também o Pai do Teatro Português Moderno e Contemporâneo” nas palavras do encenador Manuel Wiborg, actor da peça António, Um Rapaz de Lisboa. “Foi provavelmente o maior encenador português de todos os tempos e um dos maiores intelectuais portugueses de todos os tempos. Um imenso ser humano. O mestre de todos nós. Uma dor profunda, a sua perda. Devia ter honras de Estado”, escreveu, num depoimento para o PÚBLICO.

“Fartei-me de lhe dizer que não me morresse antes de mim”

O gestor cultural Miguel Lobo Antunes conheceu Jorge Silva Melo no sexto ano do liceu. “Ficámos amigos desde então. O meu melhor amigo. Quando me convidaram para o Centro Cultural de Belém (CCB), pedi-lhe: ‘Jorge, vens comigo?’ Ele disse logo que sim. Até isso fizemos, trabalhámos juntos durante cinco anos”, recorda, num depoimento enviado ao PÚBLICO. “Mais velhos, soltou-se-me a ternura. Dizia-lhe queridezas, tocava-o quando podia. Pouco falávamos de nós. Não era preciso. Fartei-me de lhe dizer que não me morresse antes de mim. Era mais velho do que ele oito meses. Tinha prioridade. Não me ligou nenhuma. Agora choro, pois claro. Sei lá por quanto tempo. Vou procurar as tuas cartas, os teus postais. Meu querido.”

“O Jorge deu-me muitos princípios por onde continuar”

“O Jorge foi, para mim, a oferta e a abertura de portas. Foi A Capital, foi ‘sem deus nem chefe’, a ideia de equipa e a tentativa”, escreve o dramaturgo e tradutor de teatro José Maria Vieira Mendes numa declaração ao PÚBLICO. “E foi livros e leituras e conversas sobre livros e viagens e encontros. Foi a copulativa, a acumulação, o armazenamento. Foi a possibilidade de errar, de não estar obcecado com a perfeição e a capacidade de agregar, de juntar gente e de fazer andar e acontecer. Foi empurrar-me para a tradução, a edição, a revisão, a escrita, os ensaios, o jornalismo, a pesquisa, o emprego, a produção, a comunicação, carregar, colar porque era assim para ele, fazia-se tudo porque tudo era preciso e tudo se podia cruzar. O Jorge deu-me muitos princípios por onde continuar e deixou-me afastar sem dizer.”

“Uma tristeza enorme”

“A intervenção artística de Jorge Silva Melo foi pautada por um espírito jovem. Fez parte da geração que renovou o teatro português no pós-25 de Abril, apostou permanentemente em jovens actores, revelou e pôs em cena autores contemporâneos. A sua morte deixa uma tristeza enorme”, escreveu o primeiro-ministro, António Costa, na mensagem que publicou na sua conta na rede social Twitter.

“Presto-lhe a minha sentida homenagem”

“Jorge Silva Melo não era apenas um dos encenadores mais emblemáticos e dinâmicos do teatro português; foi, a par disso, actor, dramaturgo, cineasta, professor, crítico, cronista, memorialista, bem como um homem politicamente empenhado e um descobridor de talentos e congregador de vontades”, evoca Marcelo Rebelo de Sousa, esta terça-feira, na página da Presidência da República.

“Estudante na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, activo no Grupo de Teatro de Letras, bolseiro na London Film School, discípulo de Peter Stein e Giorgio Strehler, foi fundador do Grupo Zero, do Teatro da Cornucópia e dos Artistas Unidos. Deixou-nos, em diversos registos, a crónica de duas gerações, a sua e a dos atores que tanto amava; um acervo de monografias filmadas sobre artistas portugueses; e um longo trabalho sobre o teatro contemporâneo, que encenou, traduziu e editou.”

“Ninguém como ele escreveu sobre os actores portugueses ainda poucos conhecidos, ou sobre os actores portugueses de quem nos tínhamos esquecido, ninguém como ele lembrou tempos antigos que não eram saudosos, mas eram de acção e de esperança. Passou toda a vida fiel a esse propósito, entre impaciências, comoções e desencantos. Presto-lhe a minha sentida homenagem”, afirma o Presidente da República.

“Viveu sob o lema do amor e do respeito pelo outro”

“Serviu a liberdade, dedicou toda a sua energia ao teatro e ao cinema, viveu sempre sob o lema do amor e do respeito pelo outro”, referiu a ministra da Cultura, também na rede social Twitter. Mais tarde, no Museu Francisco Tavares Proença Júnior, em Castelo Branco, Graça Fonseca disse aos jornalistas: “A cultura fica muito mais pobre na perspectiva de que o Jorge [Silva Melo] nos deixou. Mas o Jorge deixa-nos também uma enorme obra, um enorme trabalho, um enorme exemplo e um enorme legado, através das muitas gerações que passaram por ele e que ele, naturalmente, de alguma maneira tocou, que irão perpetuar esse legado.”

Que profunda tristeza”

“É como se tivesse ardido a nossa mais esplêndida biblioteca, como se tivesse ruído o nosso mais fulgurante teatro. Que profunda tristeza”, escreve, na rede social Facebook, o dramaturgo e encenador Tiago Rodrigues, o ex-director artístico do Teatro Nacional D. Maria II.

“O Jorge Silva Melo foi um incansável trabalhador do teatro, um obstinado construtor de outras maneiras de inventar espectáculos, um arquitecto de colectivos mais solidários, uma enciclopédia generosa ao serviço das novas gerações, um feroz defensor da sua e nossa liberdade de pensamento, uma locomotiva intelectual que transformou o teatro e a cultura de um país. É um mestre para tantas e tantos que com ele aprenderam, que com ele trabalharam, que se alimentaram do seu trabalho. Vai fazer-nos tanta falta”, acrescenta o autor de By Heart e Catarina e a Beleza de Matar Fascistas, que este ano assume a direcção do Festival d’Avignon.

“Obrigado, Jorge. Celebremos o Jorge”

“Acordar com a notícia da morte do Jorge Silva Melo é ver o teatro português perder uma das suas figuras incontornáveis. Encenador, dramaturgo, actor, fundador de duas companhias emblemáticas, o teatro da Cornucópia e os Artistas Unidos, indivíduo sábio, agente político… Em 1996, com 20 anos, vi pela primeira vez um dos seus espectáculos, com a consciência que estava a assistir a algo histórico. Era o António, Um Rapaz de Lisboa. O teatro português nunca mais foi o mesmo e eu também não. Obrigado, Jorge. Celebremos o Jorge”, escreveu, esta terça-feira, na sua página de Facebook, o actor, encenador e dramaturgo que fundou o Teatro Praga, Pedro Penim, actual director artístico do Teatro D. Maria II.

“Derradeiro aplauso”

Também a actriz Maria Rueff deixou uma missiva nas redes sociais, com um “derradeiro aplauso para Jorge Silva Melo”. “Deixa o Teatro bem mais pobre”, escreveu, enquanto o cineasta Fernando Vendrell manifestou, da mesma forma, pesar pela perda do criador: “Ficamos tão mais pobres sem ele, e sem a sua amizade.”

“Um incansável criador de mundos”

“O Jorge Silva Melo foi um incansável criador de mundos. No teatro e muito para lá dele. E aqueles –somos tantos, tantas – que ele tocou, com quem discutiu, construiu, que entusiasmou, ficam agora com um enorme vazio. Até de palavras”, escreveu a coordenadora nacional do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, também actriz, na rede social Twitter.

“Era um homem livre”

“Poucas pessoas falavam tão bem de livros, de teatro, de vida, de seres humanos, de cidades, de épocas, de coisas raras, de atmosferas, de nostalgia, sobretudo de nostalgia, como o Jorge Silva Melo, talvez porque a vida dele era feita de livros, de teatro, de seres humanos, de cidades, de memórias, muitas memórias, e de uma noção aguda do que ficou pelo caminho, do que se perdeu”, escreveu o poeta e crítico literário José Mário Silva, na sua página no Facebook.

“Ouvi-lo à conversa, conversa solta, com cafés e cigarros, era um espanto (nunca esquecerei aquela voz única, entre metal e veludo). Lê-lo era melhor ainda. Porque havia nos seus textos uma inteligência sem esforço, absolutamente natural, espontânea; uma inteligência feroz, por vezes sarcástica, mas que nunca esmagava o leitor, abria-lhe portas, e nunca lhe falava de cima, só olhos nos olhos e a tratar por tu.”

“Um dia, convidei o Jorge para apresentar um livro meu, de poesia. Ele, generoso, aceitou. No dia da apresentação, percebi que ele não tinha gostado dos poemas, ou só de alguns, poucos. Não fez o que se faz sempre: mentiras piedosas, elogios vagos, elipses e omissões convenientes. Expôs com brilho as suas dúvidas, as resistências, a falta de entusiasmo. Foi de uma honestidade absoluta e brutal. Algumas pessoas sentiram-se ofendidas, e mais ainda, desconfio, por eu não me sentir ofendido. A verdade é que só me senti grato. Pedi a opinião ao Jorge e ele deu-ma. Sem merdas, sem palmadinhas nas costas, sem condescendência. Como devia ser sempre. Era um homem livre, um melancólico terno, um poço de sabedoria, o Jorge. E vai fazer-nos tanta falta, oh, se vai”, conclui José Mário Silva.

“Um dos maiores de sempre do teatro português”

João Branco, director do Grupo de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo, em Cabo Verde, escreveu na sua página do Facebook: “Que tristeza. Um dos maiores de sempre do teatro português (e de língua portuguesa) nos deixou. Jorge Silva Melo nunca serás esquecido [...] O vazio que deixa não tem medida”, conclui o responsável pelo Mindelact, festival de teatro de Cabo Verde, director do pólo local do Camões Centro Cultural Português.

“Até sempre, Jorge!”

O director do Teatro Municipal do Porto, Tiago Guedes, responsável pelo festival Dias da Dança, também escolheu as redes sociais para lamentar a morte do encenador: “Que notícia tão triste. Até sempre, Jorge!” No Facebook do director artístico do Varazim Teatro, Eduardo Faria, pode ler-se: “E agora, Mestre, como aquieto todo o desespero com que me atormenta este vazio? Até um dia, meu tão generoso e bom amigo Jorge Silva Melo, que com a tua partida nos deixas a todos órfãos do teu saber e amputados do teu fazer. Até já.”

Por seu lado, a actriz Carla Chambel escreveu, na mesma rede social: “Uma parte do que somos, foi-se. Obrigada, Jorge, por nos teres alimentado com tanto”. A fadista Aldina Duarte afirmou: “Devo-lhe tanto, devemos-lhe tanto.” O encenador e dramaturgo Ricardo Cabaça, co-fundador e co-director artístico da 33 Ânimos, escreveu nas redes sociais: “Devo-lhe tanto, tanto. Reli agora algumas das mensagens que trocámos e deu-me uma vontade tremenda de chorar. Sempre te agradeci, mas nunca é de mais. Obrigado, mestre Jorge.”

“O meu trevo de quatro folhas”

“Já não me lembro onde nos conhecemos, mas seguia-o de longe desde miúda. A partir dos 20 anos, tive muitas primeiras vezes consigo: Cinemateca, feira dos livros da Rua Anchieta, casa de fados a ouvir a Beatriz da Conceição, a lista dos clássicos do mundo inteirinho para a minha primeira biblioteca. A viagem a Itália: mandou uma gravação caseira, muito antes de eu sonhar gravar ou o que fosse, para o Piccolo, acreditando que era eu que corresponderia ao que a peça pedia, e assim foi. Levou-me de braço dado para cima de um palco enorme e aconteceu tudo como dizia... São tantas, tantas coisas tão singulares. Mas a marca mais funda é termos em comum o melhor amigo, isso diz o mais importante da nossa amizade. E o que mais me chateia foi ter descoberto tão tarde que perdias a cabeça com cerejas, tal como eu. Abraço de mil cerejas, meu Jorge”, escreveu a fadista Aldina Duarte na sua página de Facebook.

“Sempre seremos herdeiros”

“Quando o Olímpio morreu, o Jorge Silva Melo escreveu este lindo e generoso texto [no PÚBLICO]. A frase final é a que retenho agora: “Não seremos jamais órfãos, sempre seremos herdeiros”, escreveu a professora Mariana Pinto dos Santos, do Instituto de História da Arte da Universidade Nova de Lisboa.

“Devo muito ao Jorge. Devemos mais do que julgamos, incluindo os que foram matando o pai e fazem hoje o teatro onde abriu mundos, brilhante e incansável. Trabalhei com ele, tivemos cumplicidades, zangas, conheci o mau feitio e a generosidade. Noite triste”, afirmou também no Twiter Pedro Jordão.

“Adormeci e quando acordo é para ler a notícia do falecimento do Jorge Silva Melo. É tudo demasiado intenso por estes dias. Foi para mim uma enorme referência cultural e ver uma peça dos Artistas Unidos na adolescência foi o que bastou para querer mudar de vida. Até sempre”, diz, por sua vez, Safaa Dib.

“Estamos de luto e tão tristes”

“Estamos de luto e tão tristes. Perdemos o Jorge Silva Melo e, com ele, tantas das memórias vivas do Teatro em Portugal. Não há palavras suficientes para falar do quanto deu ao país e a nós, São Luiz, em particular. Aqui começou a vir por causa dos filmes que via a partir do segundo balcão, aqui encenou tantos e tantos espectáculos”, lê-se na página oficial do Teatro Municipal São Luiz.

“Ouvi-lo falar sobre as peças que encenava e os actores com quem trabalhava – muitos deles dando com ele os primeiros passos num palco – era como abrir um livro de histórias sem fim. Havia sempre mais uma que ainda não havia contado, havia sempre mais uma que partilhava com natural generosidade. Reinventor, fundador, criador, escritor, contador, sabedor, nunca deixou, até ao fim, de fazer aquilo em que acreditava. Teatro. Como previsto e desejado pelo Jorge, estreamos a sua última encenação na próxima quarta-feira, 23, aqui no São Luiz. Continuaremos com ele no tudo que nos deixou escrito e filmado, no tudo que nos contou, nos mundos que nos abriu. Até já, vizinho.”

“Perdeu-se a memória do Jorge Silva Melo”

“Era da tribo dos entusiastas. Foi o meu primeiro professor de cinema, com um programa de televisão que fazia na RTP2, em que escolhia um filme e o comentava. Ao domingo à noite, creio. Nunca lhe disse, por pudor, o quanto lhe devo por isso”, escreve o jornalista e editor Carlos Vaz Marques na sua página no Facebook.

“Escrevia extraordinariamente bem e falava com uma paixão intensa daquilo que o apaixonava: filmes, livros, um café desaparecido, actores que viu na adolescência e que já só a memória dele era capaz de resgatar ao esquecimento. Perdeu-se a memória do Jorge Silva Melo. Perdeu-se, com ela, aquilo que já só ele guardava de um tempo passado que nos servia para acreditarmos no que do presente poderá fazer sentido para o futuro. Ele soube cultivar a beleza do efémero, transportando-a como bagagem valiosa, nesta viagem que sempre se termina sem sabermos o desfecho da guerra do momento. Passageiros somos. Passageiros entre ruínas.”

“Agradeço-lhe tudo o que sabemos, claro, mas sobretudo estas pequenas coisas”

“Estou triste, sabem. Sempre gostei do Jorge. Conhecemo-nos na fria Comuna, quando ele preparava um dos seus seminários de escrita. Sabes escrever, não sabes?, perguntou-me. E foi assim sempre, metendo-se comigo por ter metade de nazareno em mim, por conhecer os amigos dos meus pais que eram também amigos dele, a falar comigo horas sobre as coplas espanholas que tanto gostávamos, a dar-me a descobrir o Terence Moix – ainda hoje um dos meus escritores, e a escrever-me depois de ver alguns dos meus espectáculos com críticas amigas e outras mais chatas – Porque te escondes? Não faças coisas com outros, faz tudo contigo no palco sempre!!!, ralhava ele comigo quando eu lhe dizia que não ia encenar um solo novo, mas um texto com outros actores”, escreveu o encenador e dramaturgo André Murraças no Facebook.

“Quis que eu fosse para o Royal Court, mas eu dizia que andava a tentar ter um emprego a sério e ele sorria. Mas insistiu e convidou-me para fazer o seminário de escrita do Simon Stephens em Barcelona para onde escrevi o Império que depois se filmou para a RTP e que está no primeiro Livrinho de Teatro que os Artistas Unidos publicaram com as minhas peças. É também esse livrinho que tem o texto sobre o atentado em Orlando que ele me disse que o tinha feito chorar (não acredito, mas lá lamechas ele era quando lhe dava para ser... coisas de copleiros).

Há meses mandei-lhe o documento com as minhas peças que vão sair em Maio nos Livrinhos dos Artistas Unidos com o texto do Cabaret Repórter X e um inédito. Senti-o menos entusiasmado com os projectos, com as mensagens no Facebook onde cortávamos na casaca da gente do teatro. Agradeço-lhe tudo o que sabemos, claro, mas sobretudo estas pequenas coisas. Um abraço e obrigado, amigo Jorge Silva Melo!”