Durão Barroso: “A solução passa por eurobonds para os custos adicionais de energia e defesa”
Ex-presidente da Comissão Europeia diz, sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia, que houve no passado “complacência” e “cumplicidade” de alguns países europeus com Putin
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José Manuel Durão Barroso, que foi presidente da Comissão Europeia, diz que Putin só aceitará dialogar quando conseguir anexar parte da Ucrânia e sugere à União Europeia que arranje mecanismos comuns para lidar com a crise energética, o risco de estagflação e a necessidade de investir em defesa.
Presidia à Comissão Europeia (CE) quando a Rússia anexou a Crimeia em 2014. Houve sanções, a Rússia foi expulsa do G8. Agora, a esta distância, acha que a comunidade internacional foi muito branda com Putin? A Alemanha foi muito complacente?
Não podemos julgar as decisões tomadas há tantos anos à luz do que se passa agora. Naquela altura, não me parece que fosse errado tentarmos, como tentámos, incluir a Rússia numa arquitectura de estabilidade na Europa. Depois da invasão da Crimeia, houve vozes na União Europeia (UE), em alguns países de Leste, países bálticos, que acharam que nós estávamos a ser demasiado complacentes.
Vendo com alguma distância, na verdade, sim, fomos complacentes. Houve alguns até que foram cúmplices: por exemplo, quando vemos um ex-chanceler alemão ir trabalhar directamente para a Gazprom. Houve complacência e cumplicidade. Não é aceitável que alguns países europeus estejam ainda com este grau tão elevado de dependência energética da Rússia depois da experiência que tivemos.
No dia 31 de Dezembro de 2008 [era presidente da Comissão Europeia], eu ia com a minha família para a festa de fim de ano no Algarve, recebo um telefonema de Bruxelas a dizer que tinha uma chamada de Putin, na altura primeiro-ministro da Rússia. Então era Putin a dizer-me que estava a dar-me um early warning de que no dia seguinte iria cortar o gás para a Europa, dizendo que ‘não é nada contra vocês, nem contra a UE, mas os ucranianos estão-nos a roubar o gás, não nos pagam o gás e por isso alguns dos teus países vão ficar afectados a partir de amanhã’. E eu disse: ‘Então isso é que é o early warning?’.
Houve duas crises destas. Na altura, tomámos medidas, a própria CE financiou reverse flows de gás entre a Roménia e a Hungria. Construíram-se alguns terminais de GNL. Houve um esforço aí, mas depois abrandou. Houve complacência e, por causa de alguns interesses, houve cumplicidade.
E agora estamos à beira de uma nova crise energética...
Já estávamos antes, por razões até de subinvestimento nalgumas energias tradicionais, algumas necessárias, como o gás, para a transição. Agora, os preços dispararam e vão continuar a disparar.
A solução era a criação de uma espécie de bonds, obrigações, para os custos adicionais de energia e também para o esforço adicional de defesa. Da mesma forma que se criou o Plano de Resiliência com mutualização da dívida, por razões de emergência devido à pandemia, agora estamos numa situação que não é de menos emergência. É muito importante que os países europeus respondam a isto de forma coerente e unificada. Senão, podemos ter um risco.
Os diferentes países já o estão a fazer. Uns dão 20 euros para subsidiar a compra de gasolina, outros têm outras medidas. Se há uma grande desigualdade, isto pode levar a que os chamados mercados voltem a distinguir outra vez as dívidas soberanas dos diferentes países. Compreendo o BCE, que tem que lutar contra a inflação e está a tomar medidas nesse sentido, mas temos que complementar a política monetária com a política orçamental. Tem que haver um “mix” das duas.
É muito possível que a Europa venha a ter um cenário de estagflação, ou seja, recessão económica com inflação que poderá atingir 8% ou mais este ano. É o pior cenário que pode existir. Temos que lutar também contra a recessão através de um estímulo orçamental. Em termos ideais, seria através de uma mutualização da dívida que permitisse ajudar os Estados-membros a enfrentar os custos adicionais de energia e também o esforço adicional que será feito no capítulo da defesa.
A UE tem estes objectivos de redução do défice e da dívida, que fazem sentido, mas em situação de emergência temos que suspender um pouco esses objectivos como agora suspendemos com a pandemia.
Isto vai ser prolongado?
Vai, estou convencido que sim. A CE vai apresentar a sua proposta em relação ao PEC — isso já terá sido discutido nesta Cimeira de Versalhes.
Essa suspensão deve durar quanto tempo?
Não sabemos. Mas temos que estar preparados para o médio e longo prazo. Este problema com a Rússia está para durar, infelizmente. Por isso, vamos ter alterações estruturais, para além da ordem geopolítica, na ordem geoeconómica global. Há um perigo real de termos o mundo dividido em dois, afectando as trocas, o comércio, o investimento. A Rússia está praticamente isolada do mundo ocidental do ponto vista tecnológico, financeiro, económico. É praticamente um Estado-pária, como se viu nas Nações Unidas.
Mas isso parece nem afectar Vladimir Putin...
Não é isso que o vai afectar no curto prazo. Mas, do ponto de vista económico, a Rússia está isolada, o que vai fazer com que a Rússia se tenha que colocar mais sob protecção chinesa. A Europa precisa mais do comércio externo do que a China ou os EUA.
Há ainda uma vítima colateral desta situação terrível, que é a agenda climática. A Europa está a liderar essa luta contra as alterações climáticas com objectivos muito ambiciosos, mas eu prevejo que alguns países comecem a adiar a saída do carvão.
A presidente da CE acha que é uma oportunidade...
Estrategicamente, é verdade. Quanto mais renováveis tivermos, menos dependentes estamos dos combustíveis fósseis. Mas parece-me que os governos vão adiar algumas das transições energéticas dos combustíveis fósseis, como os países da Europa central e de Leste, até por causa do preço.
Relativamente a Portugal, fala-se agora mais do Porto de Sines e da sua importância estratégica para levar gás natural à Europa...
Portugal tem uma hipótese de se ligar à rede europeia. Até agora, a dificuldade tem sido em transpor os Pirenéus. Espero que a França agora seja mais aberta porque no passado tem colocado dificuldades na ultrapassagem dos Pirenéus.
Há também outras hipóteses para Portugal que têm a ver com a relocalização das cadeias de valor. Se relocalizarmos na Europa algumas cadeias de valor nos chamados sectores estratégicos, Portugal, em princípio, tem custos mais baixos nalgumas áreas do que a Europa mais rica. Pode ser a base para uma certa reindustrialização.
Há pouco, dizia não estar convencido de que Putin sucumbirá por causa das sanções económicas. O que poderá fazer Putin recuar ou dialogar? A revolta da oligarquia russa?
O objectivo de Putin é tornar a Ucrânia irrelevante do ponto de vista da actuação internacional. Já o disse, aliás. Quer acabar com a “anti-Rússia”, que está às portas da Rússia. Ele nunca aceitou a ideia da independência da Ucrânia. Uma vez disse-me que a Ucrânia era uma criação artificial da CIA e da UE. Ele quer tornar a Ucrânia um Estado-vassalo, como fez com a Bielorrússia. Vai, pelo menos, querer territorialmente anexar à Rússia a parte Leste, como já fez com a Crimeia. Vai haver um reordenamento das fronteiras. O objectivo é neutralizar a Ucrânia, é um objectivo geopolítico e não tanto económico. Não vai desistir até conseguir esse objectivo, vai tentar ir até ao fim.
Tirando o caso notável da África do Sul e o apartheid, não vejo as sanções, por si só, resolverem seja o que for. Mas acho que as sanções da UE são robustas e deviam ter sido tomadas.
Deve-se pôr um preço na actuação de Putin. Esta guerra é muito uma guerra de Putin. Para mim, Putin é um produto do ressentimento em relação ao declínio da Rússia, não por causa do fim do comunismo, mas por causa de muitos concidadãos terem ficado sem país porque ficaram fora da Rússia. A parte económica vai pressioná-lo, mas, infelizmente, não creio que seja para já. Creio que Putin só se disporá a uma negociação quando tiver uma parte daquilo que quer.
A intenção será ficar-se pela Ucrânia ou estender-se até aos países bálticos ou mesmo aos Balcãs? Este conflito pode espalhar-se?
Há possibilidades de ele se espalhar, intencionalmente ou não. Trata-se de conflitos muito perto das fronteiras da NATO. Este domingo, houve um bombardeamento a uma base mesmo na fronteira com a Polónia, que é usada pelo Ocidente para enviar armas e treinar tropas. Pode haver acidentes, factores imprevisíveis. Um Putin acossado é ainda mais perigoso. Acho que vai haver problemas nos Balcãs. A Sérvia, embora tenha votado com o Ocidente na ONU, tem uma opinião pública que, em grande parte, está com a Rússia. Há situações por definir na Bósnia-Herzegovina.
Vai haver uma vingança, por assim dizer, de Putin?
Pode haver.
Se Putin transpuser a “linha vermelha” da NATO, pode haver uma guerra nuclear?
Exactamente. Mas mesmo sem isso não se exclui a utilização de armas nucleares. Em relação a 2014, Putin modernizou as Forças Armadas mesmo em equipamento nuclear, algumas são de alcance médio cuja probabilidade de serem utilizadas é maior do que as armas mais potentes. Há dias, ele falou nisso e o passado mostra-nos que as ameaças que ele faz têm mesmo concretização. Toda a vigilância é pouca.
E por isso defende um reforço de investimento em defesa na NATO e na UE?
Isto, para nós, é um acordar para a realidade. Mostra que, infelizmente, o mundo não é aquele mundo angélico que nós gostávamos que fosse.
A UE não pode ser uma organização supranacional de escuteiros. É desejável que a UE esteja agora a atingir a sua maturidade geopolítica, a perder muitas das suas ilusões e se decida a olhar a sério para as questões de defesa, não por qualquer belicismo, mas é a velha máxima romana: “Se queres a paz, prepara-te para a guerra.” Foi extremamente importante a mudança de posição da Alemanha. Por razões históricas e compreensíveis, tem tido alguma inibição na utilização da força militar. Agora deu um passo importantíssimo: 2% do PIB em Defesa significa que vai ter, a curto e médio prazo, umas Forças Armadas maiores do que a França e o Reino Unido.
Está a defender a criação do tal Exército único europeu?
Não gosto muito dessa expressão, mas defendo uma identidade europeia de defesa e que deve haver progressivamente uma defesa europeia, como complementar da Defesa da NATO.
Concorda com a decisão da UE de bloquear o sinal do canal russo RT e Sputnik em território europeu? Não é um exemplo de censura?
Também tenho algumas dúvidas nesse aspecto. É fundamental o mundo ocidental não perder os valores do pluralismo.
É presidente da Aliança Global para as Vacinas. Já passou mais de um ano desde que começaram a ser administradas as vacinas contra a covid-19. Não estava na altura de as patentes serem quebradas, como já defendeu?
Em situações de emergência, justifica-se a quebra de patentes, embora não possamos quebrar completamente as patentes porque senão não haverá mais estímulo para as companhias farmacêuticas investirem. A esmagadora maioria do investimento nesta matéria foi investimento privado. Se não tiverem garantias que têm receitas para compensar o investimento, não o vão fazer.
O que defendi é que em situações de emergência se deve levantar a patente, mas patente não é tudo. A vacina não é bem um produto, é um processo. Nesta crise, houve uma companhia que disse que deixava usar a sua patente, mas ninguém conseguiu utilizar porque tão ou mais importante do que a patente é a transferência de know-how. Essa transferência está-se agora a fazer fora dos fornecedores tradicionais, nomeadamente para o fabrico de vacinas em África.
Mas isso vai demorar muito tempo. Como é que se consegue atenuar a grande diferença de administração de vacinas entre a Europa e o continente africano?
O que se passou agora não foi tanto pelas patentes, mas porque houve restrições às exportações dos países produtores, como a Índia ou os EUA. Também houve um açambarcamento das vacinas pelos países mais ricos, o que é lamentável.
Depois, esses países partilharam o que tinham em excesso e graças a isso conseguimos compensar essas restrições às exportações. Neste momento, nós, Covax, já distribuímos mais de 1300 milhões de vacinas. Estamos ainda com os países africanos bastante atrás em número de vacinações. Neste momento, o problema já não é de falta de vacinas, mas a capacidade de as fazer chegar e a capacidade de vacinar as pessoas. Houve mau comportamento quer de alguns governos, quer de algumas companhias farmacêuticas.
Houve egoísmo?
Houve. Nós tínhamos feito contratos com empresas na base de centenas de milhares de milhões e conseguimos os preços mais baratos no mercado e depois as empresas foram contactadas por alguns países que pagavam mais e puseram-nos para trás na fila. Dia 8 de Abril, vou ser anfitrião, com o Governo alemão, de uma nova campanha para angariar fundos para pedir 5,2 mil milhões de dólares para criar uma reserva de vacinas para a próxima pandemia.
Notícia corrigida às 13:37 para substituir a palavra Ocidente por Rússia na frase “mas, do ponto de vista económico, a Rússia está isolada, o que vai fazer com que a Rússia se tenha que colocar mais sob protecção chinesa”.