A missão de uma mãe: alcançar a sua família presa na destruída Mariupol
“Como mãe tenho direito que morramos juntas”, responde. “Mas não quero que morramos juntos. Quero que vivamos juntos.”
Enquanto centenas de milhares de civis presos na cidade ucraniana de Mariupol esperam desesperadamente por uma saída, Yulia Karaulan tenta desesperadamente entrar. Carregando apenas uma pequena mala de couro azul, a mulher de 38 anos quer viajar no último camião de um comboio humanitário de mais de 30 veículos que saiu de Zaporizhzhia no sábado.
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Enquanto centenas de milhares de civis presos na cidade ucraniana de Mariupol esperam desesperadamente por uma saída, Yulia Karaulan tenta desesperadamente entrar. Carregando apenas uma pequena mala de couro azul, a mulher de 38 anos quer viajar no último camião de um comboio humanitário de mais de 30 veículos que saiu de Zaporizhzhia no sábado.
Yulia é mãe de uma menina de 10 anos e não suporta a sensação de não estar ao lado da sua filha, do marido e da mãe, que estão na cidade, à mercê das bombas russas. “A minha vida é a minha filha, e não consigo chegar até ela”, lamenta, acrescentando que se sente “tão culpada” por não estar com ela.
Mariupol, o porto no Mar de Azov onde Yulia Karaulan cresceu, está sob o domínio das tropas russas. Na semana passada, um comboio carregado de alimentos e medicamentos essenciais partiu de Zaporizhzhia, 193 quilómetros a noroeste, tentando chegar à cidade. Além dos dez camiões que transportam alimentos e medicamentos, havia 20 autocarros vazios, preparados para a evacuação de civis.
Contudo, os veículos foram forçados a voltar porque outros comboios humanitários foram alvejados e bombardeados pelas forças russas. Uma ambulância voltou cheia de buracos de balas. O presidente ucraniano Volodimir Zelensky apelidou de “terror total” o que as forças russas estão a fazer. Dentro de Mariupol, há corpos que continuam nas ruas e é perigoso recuperá-los, dizem testemunhas. Funcionários municipais cavaram valas comuns.
O número de mortos é impossível de confirmar, mas as autoridades da cidade dizem que chega a mais de 1500 pessoas — acima do número de mortes de civis que as Nações Unidas verificaram em todo o país. No início desta semana, uma grande explosão destruiu partes da maternidade e do hospital infantil. Partes da cidade foram devastadas. Não há água potável, e o desespero levou a saques, segundo relatos.
Yulia Karaulan sabe que, mesmo que chegue à família pode ficar lá presa. “Como mãe tenho direito que morramos juntas”, responde. “Mas não quero que morramos juntos. Quero que vivamos juntos.”
Numa viagem de negócios
Quando a invasão da Ucrânia pela Rússia começou, Yulia estava numa viagem de negócios a Parma, Itália. Nas redes sociais, a sua galeria de imagens é um rol de pizzas e outras frivolidade. Há semanas que a retórica da guerra vinha a ser construída, mas “ninguém acreditava”, diz. “Esperávamos que ele [Putin] não estivesse louco.”
O regresso de Yulia a casa estava programado para 24 de Fevereiro, o dia em que a Rússia atacou, mas o espaço aéreo estava fechado. Por isso, voou para a Polónia. Então, ainda não estava muito preocupada. O marido contou-lhe que estava tudo bem em casa. “Se eu tivesse imaginado o que ia acontecer, teria tentado chegar mais rapidamente”, lamenta-se.
Foi só no dia 2 de Março que aumentou a gravidade da situação. O marido e a filha foram forçados a sair do apartamento que o casal comprou há dois anos. Foram para um abrigo comunitário para escapar dos bombardeamentos e explosões. “Como estás?”, perguntou Yulia ao marido por mensagem, mas esta não seguiu. As comunicações tinham sido cortadas.
Há uma década que Yulia Karaulan deixou de fumar, fê-lo quando estava grávida, mas recomeçou naquele dia. Oito dias depois, segurando um fino cigarro de menta entre as unhas cor-de-rosa, a mulher treme de frio do lado de fora de um espaço para eventos que foi transformado num centro de boas-vindas, em Zaporizhzhia, para os ucranianos que fogem do avanço da Rússia no seu território.
“Vou parar de fumar quando voltar a ver a minha família”, promete. Foi no passado dia 4 que atravessou a fronteira polaca e seguiu para sudeste, o mais próximo possível de Mariupol. Todos os dias está no centro como voluntária porque é algo que a distrai da preocupação com a família. Assim continua, presa em Zaporizhzhia, à espera.
“Todas as noites me deito a pensar que vou ver a minha filha no dia seguinte, mas todos os dias percebo que isso não vai acontecer”, confessa, acrescentando que se sente dormente, como se visse a sua vida do lado de fora, como se fosse um filme. Não consegue olhar para as fotografias da família. É tão difícil.
“Não venhas, por favor”
Yulia enviou ao marido os detalhes sobre onde se encontrarem, caso os camiões e os autocarros da Cruz Vermelha consigam passar. Essa mensagem também não chegou ao seu destino. Só uma semana depois de as comunicações terem sido cortadas é que a mulher conseguiu saber que a família continua viva. A ligação telefónica tinha interferências, mas foi a sua filha quem falou primeiro.
“Eu disse à minha filha que ia a caminho”, conta Yulia Karaulan. Então, ouviu a voz do seu marido: “Não, por favor. Isto é um inferno”, disse-lhe. “Não venhas, por favor, não consegues imaginar [o que se está a passar].” Ele descreveu-lhe o abrigo onde estão com mais quatro mil pessoas. Disse-lhe que a comida estava a acabar e que a água não era boa para beber, conta a mulher.
E então ouviu a voz da sua mãe. “Se Deus permitir, voltaremos a encontrarmo-nos”, disse a mulher, uma cidadã russa, que está com o genro e a neta. “Nunca diferenciei russos e ucranianos. Para mim é como uma nação”, disse-lhe a mãe. “É o povo russo a bombardear o povo russo. É uma loucura. Achei que éramos todos irmãos.”
“É a guerra mais sem sentido e injusta que existe”, diz Yulia Karaulan. “Não é a minha história. Não é a história do meu marido. É a história de meio milhão de pessoas.”
Na quarta-feira, uma amiga ligou-lhe e disse-lhe que a sua família tivera sorte por estar num abrigo comunitário onde há alguns mantimentos. Essa amiga e a sua família encontram-se na cave de casa, onde não há electricidade e a água que bebem, derretem da neve ou apanham na piscina. Eles compraram carne antes da guerra, mas estragou-se. “Agora salgam-na e tentam cozinhá-la de alguma maneira , para terem qualquer coisa.” E os ratos estão por toda parte.
“Ela disse-me que todos estão a morrer”, continua Yulia e o seu discurso embarga-se: “Enquanto estamos aqui, a conversar, eles estão lá, a morrer.” A cidade que Yulia Karaulan amava está em ruínas, mas ainda há uma oportunidade de salvar vidas, diz, com esperança. “Hoje eles estão vivos, mas o que será o amanhã, não sabemos.”
“Não conseguia mexer-me”
No mesmo dia em que conversou com o marido, Yulia Karaulan conheceu uma família que conseguiu escapar de Mariupol, um casal com um bebé. Eles apareceram no centro onde a mulher é voluntária com as janelas do carro partidas. Disseram que passaram pelas linhas da frente e por bombardeamentos.
Trocaram números de telefone. Horas mais tarde, naquela noite, a mulher ligou para dizer a Yulia que uma bomba caíra no abrigo onde a sua família se encontrava. Disse que a sua família tinha morrido. Yulia encontrava-se o apartamento onde está alojada, em Zaporizhzhia, com amigos de um colega. Estava no corredor, encostou-se à parede e escorregou até cair no chão.
“Não conseguia mexer-me. Fiquei apenas a olhar para a parede”, conta. Precisava de ir à casa de banho, mas não conseguia pôr-se de pé. “Achei que a minha família estava morta e pensei o que poderia fazer para me juntar a eles. Não estava bem.”
Contudo, os seus anfitriões, disseram-lhe que não havia notícias de tal bombardeamento em Mariupol. Mas Yulia não acreditou. Ligou para a polícia, para os serviços de emergência, para todas as pessoas que conhecia, até perceber que não era verdade. Por que lhe terá dito tal coisa, aquela mulher, Yulia não sabe, mas agora bloqueou o seu número de telefone.
No dia seguinte, falou por breves instantes com o seu marido. “Quais são as novidades?”, perguntou ele. “Por favor, faz alguma coisa, está tudo muito mau, as pessoas estão a morrer.” A chamada caiu. Desde quinta-feira que não falam. “Não sei se estão vivos. Eu não tenho ideia do que está a acontecendo por lá. Não consigo falar com eles.”
Já pensou em viajar até uma vila vizinha e caminhar até à cidade. “Mas eu percebo que se o fizer isso, provavelmente serei morta, e a minha filha ficará órfã”, diz. “Não é uma solução, estou a tentar perceber o que posso fazer nesta situação.” Foi na sexta-feira à tarde que conseguiu entrar no comboio humanitário. “Só quero ir buscar a minha família”, disse ao The Washington Post, já pelo telefone.
O comboio de ajuda humanitária percorreu apenas alguns quilómetros. Ficou parado na estrada durante horas até que decidiu voltar para trás porque a rota não era segura e havia bombardeamentos. Yulia chorou todo o caminho de regresso a Zaporizhzhia.
No sábado, o comboi voltou a tentar, saoi mais cedo e Yulia ia cheia de esperança. Uma dúzia de padres da Igreja Ortodoxa Ucraniana entoou uma oração antes de se distribuírem pelos veículos. Um dos padres que ia num autocarro fez o sinal da cruz quando a comitiva começou a andar. “Deus está comigo”, declarou Andrey Kovalenko, um bispo que viajou numa ambulância com uma cruz de madeira colada no pára-brisas.
Yulia afirma que não sente medo. Vestindo um casaco forrado com pele falsa e um top com as palavras “Best Runner” escritas com lantejoulas, a mulher despede-se: “Como posso ter medo se a minha filha lá está?”
A jornalista Anastacia Galouchka contribuiu para esta reportagem
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post
Tradução: Bárbara Wong