Guerra afasta Rússia da cooperação internacional no espaço
Em resposta às sanções decretadas por causa da invasão da Ucrânia, a agência espacial russa está a retirar-se de projectos e a pôr em causa a sua continuação noutros, como a Estação Espacial Internacional, que é o melhor exemplo da colaboração entre nações no espaço.
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O fim da Guerra Fria permitiu que em vez de rivalidade, houvesse cooperação da Rússia e dos Estados Unidos no espaço, a que se juntaram parceiros europeus e de outros países. A Estação Espacial Internacional, por exemplo, é fruto dessa cooperação. Mas agora, por causa da invasão da Ucrânia pela Rússia e a enxurrada de sanções internacionais contra Moscovo, tudo isso pode ficar para trás.
Mais do que cooperação, há até uma considerável interdependência. E isso pode agora servir de arma de arremesso à Rússia para retaliar contra as sanções impostas por causa da guerra na Ucrânia.
O Presidente norte-americano Joe Biden disse que as sanções impostas à Rússia “degradariam a indústria aeroespacial russa, incluindo o seu programa espacial”, porque a privariam de “tecnologia sensível” como a usada na aviação, nas telecomunicações e semicondutores.
A resposta russa tem sido cheia de ameaças, proferidas por Dmitri Rogozin, o director-geral da agência espacial russa Roscosmos. “Se [os Estados Unidos] bloquearem a cooperação connosco, quem vai salvar a estação espacial de uma descida descontrolada da sua órbita e de cair nos Estados Unidos ou na Europa? Também há a opção de deixar cair esta estrutura de 500 toneladas na Índia ou na China. Querem ameaçá-las com esta perspectiva?”
A ameaça contida nestas palavras refere-se a uma função cumprida pelas naves de carga Progresso russas, cujos motores, quando estão acopladas à estação espacial, são usados para corrigir e elevar a rota da estação, ou para a desviar de lixo espacial numa manobra de emergência. Os motores do módulo russo Zvezda da estação também podem ser usados para essa função.
Mas a agência espacial norte-americana NASA também ajuda a controlar a posição em órbita da estação espacial e gera a electricidade usada pela plataforma. No entanto, sem a Rússia, as coisas complicar-se-iam, reconhece Wayne Hale, ex-gestor do programa dos vaivéns na NASA e membro do conselho consultivo da agência espacial norte-americana, em declarações ao site The Verge. Mas a estação espacial – onde neste momento há quatro astronautas norte-americanos, dois russos e um alemão – não cairia do céu aos trambolhões imediatamente. “Não seria numa semana, provavelmente levaria anos”, disse. Isso daria tempo para arranjar alternativas.
Na verdade, já estão a ser planeadas alternativas: está marcado para Abril um teste com uma nave de carga Cygnus, de fabrico privado, que também abastece a estação, para verificar se pode cumprir as mesmas funções que as Progresso.
Mas se os russos saírem, podem complicar-se os planos para desorbitar a estação espacial – quando se determinar que já não pode ser mais utilizada, o que acontecerá em algum momento após 2030. Tem de se fazer descer a plataforma orbital de forma controlada e a ideia era usar para isso naves Progresso – tal como se fez com a estação espacial russa Mir, em 2001. “Se os russos virassem costas e nos deixassem sozinhos, arranjaríamos um programa de emergência para tentar desorbitar a estação com os nossos sistemas, embora não saiba como dizer como seria”, disse Hale à The Verge.
Adeus
No que é claramente uma provocação, a agência de notícias estatal russa RIA Novosti publicou um vídeo no Telegram feito pela agência espacial Roscosmos em que se vê cosmonautas russos a despedirem-se do astronauta norte-americano Mark Vande Hei – que está neste momento a bordo da estação espacial –, e depois vê-se o módulo russo a desligar-se do resto da estação.
Mas até que ponto é que toda esta agressividade não é fogo-de-vista e a cooperação, pelo menos na estação espacial, não irá continuar? Asif Siddiqi, historiador da Universidade Fordham (Nova Iorque), que estuda as actividades da Rússia no espaço, recorda que houve um período de grande tensão nas relações administrativas entre a Roscosmos e a NASA em 2014, quando a Rússia anexou a Crimeia, e foram impostas sanções a Moscovo. Foi conhecido na altura que existiam instruções para os funcionários da NASA não comunicarem com os seus colegas russos, disse à revista Scientific American. “Mas havia uma cláusula que dizia que as operações da estação espacial continuariam como antes”, explicou.
No entanto, se um dos parceiros principais da estação espacial quiser sair do projecto, isso pode levar meses ou até anos até estar concluído. “Não é só desligar um botão”, disse Siddiqi. Apesar disso, o historiador não prevê que haja grande futuro para a colaboração espacial entre os EUA e a Rússia para além de 2031.
Pau de vassoura
Estão a ser feitas muitas ameaças de retaliação russa no espaço e o seu porta-voz é Dmitri Rogozin – que, em 2014, quando a Rússia foi alvo de outra leva de sanções por causa da anexação da Crimeia, chegou a sugerir que os astronautas norte-americanos podiam tentar chegar à estação espacial “com um trampolim”. “Ele é, digamos, uma personagem”, disse Asif Siddiqi à Scientific American. Nessa altura, os EUA estavam completamente dependentes dos Soiuz russos para lá chegar; agora já existem foguetões e módulos da SpaceX (de Elon Musk) capazes de transportar passageiros para a plataforma orbital.
Rogozin anunciou também que deixariam de ser exportados motores russos para uso em foguetões fabricados por empresas norte-americanas. E fê-lo de forma bastante colorida. “Numa situação como esta, não podemos fornecer aos EUA os melhores motores de foguetões do mundo. Deixá-los voar com outra coisa qualquer, como paus de vassoura”, disse Rogozin, usando o Twitter.
O milionário Elon Musk não perdeu a oportunidade de responder. Poucas horas depois, publicou um tweet com o logotipo da sua empresa e as palavras “vassouras americanas”. Entre esses dois momentos, um foguetão Falcon 9 da SpaceX tinha lançado para o espaço mais 47 satélites que seriam integrados na constelação Starlink, que fornece acesso à Internet por satélite. E que está a assegurar serviços de Internet na Ucrânia, após um apelo feito ao milionário através do Twitter por um dos vice-ministros do Governo ucraniano.
A decisão de não exportar mais motores russos deve afectar em especial os lançadores Antares do grupo Northrop Grumman, que levam para o espaço as naves de carga Cygnus que abastecem a estação espacial.
A Rússia vai deixar também de prestar assistência pós-venda aos motores comprados pela United Launch Alliance (que junta a Boeing e a Lockheed Martin) e usados nos foguetões Atlas 5. O grupo, no entanto, está a fazer testes para substituir este lançador por um outro fabricado pela Blue Origin de Jeff Bezos.
ExoMars posta em causa
Mas isto são ameaças para o futuro. Já concretizada foi a recusa em lançar os 36 satélites da empresa britânica OneWeb que já estavam a bordo de um foguetão Soiuz no cosmódromo de Baikonur, no Cazaquistão, se não fossem cumpridas as exigências feitas por Dmitri Rogozin, em cima da hora: o director-geral da agência espacial russa exigiu que o Governo britânico retirasse a sua participação na OneWeb e que a empresa garantisse “que os seus satélites não seriam usados para objectivos militares”.
A empresa, cujo negócio é fornecer acesso à Internet através de uma constelação de satélites no espaço, foi salva da falência pela intervenção do Governo britânico em 2020 – daí a participação do Estado no seu capital – e recusou essas condições. Os satélites não foram lançados, e Rogozin colocou um vídeo no Twitter em se viam funcionários da Roscosmos numa plataforma, ao lado do foguetão com os satélites a bordo, a tapar as bandeiras britânica, norte-americana e japonesa que estavam na sua chapa exterior.
Por causa deste vídeo, o ex-astronauta Scott Kelly, que numa das três missões que cumpriu na estação passou um ano no espaço, envolveu-se numa discussão com Rogozin no Twitter. “Dimon, sem essas bandeiras e as divisas que levam, o seu programa espacial não valia nada”, tweetou Kelly. “Talvez pudesse arranjar um emprego no McDonald’s, se o McDonald’s ainda existir na Rússia”, acrescentou. A discussão a partir daqui foi descendo ainda mais de nível, com Rogozin a chamar “demente” ao astronauta, entre outras coisas.
O afastamento da Rússia dos seus parceiros espaciais é ilustrado também pela ordem de saída dos 87 técnicos russos que trabalhavam na base de lançamento de foguetões da Agência Espacial Europeia (ESA) em Kourou, na Guiana Francesa, com a informação de que não seriam lançados mais foguetões russos Soiuz a partir dali, “suspendendo a cooperação com os parceiros europeus”. Pelo menos quatro missões espaciais serão afectadas nos próximos meses.
Satélites que deveriam completar a constelação de navegação global europeia Galileu ficaram sem ter foguetões para ir para o espaço, diz o Le Monde, bem como um satélite militar francês. Em comunicados que não entram em grandes pormenores sobre o destino imediato destes satélites, a ESA diz esperar pela “chegada iminente ao mercado dos novos lançadores Vega-C e Ariane 6”.
As sanções impostas por causa da invasão russa da Ucrânia vão obrigar a adiar a missão conjunta da ESA e da Roscomos ExoMars, que deveria ser lançada por um foguetão russo no Outono a partir do cosmódromo de Baikonur, no Cazaquistão. O objectivo era ter a rolar na superfície marciana o primeiro robô europeu – baptizado Rosalind Franklin, em homenagem à cientista que deu passos decisivos para se compreender a estrutura da molécula de ADN – com a missão de procurar indícios potenciais de vida, com câmaras, sensores e uma broca que poderá perfurar o solo marciano até dois metros de profundidade.
Mas a ESA emitiu um comunicado em que reconhecia que as sanções económicas contra a Rússia decretadas por causa da invasão da Ucrânia tornam “improvável” que o lançamento ocorra em 2022. E como as oportunidades de lançar sondas para Marte ocorrem em intervalos de dois anos – quando o planeta vermelho entra num alinhamento com a Terra que permite fazer uma viagem mais curta –, o adiamento será pelo menos para 2024.
Esta é a terceira vez que a sonda é adiada: inicialmente, devia ser lançada em 2018, mas foi adiada para 2020, quando a pandemia e problemas técnicos obrigaram a remarcar para 2022. O que começa a tornar-se grave para esta missão: “O problema é que os instrumentos científicos que foram desenvolvidos já há muitos anos [para esta missão] começam a envelhecer. A ESA ainda quererá investir dinheiro na ExoMars, quando há outros projectos à espera? Não sei se alguma vez vamos ver esta missão arrancar”, disse ao Le Monde Frances Westall, que fez parte do grupo de cientistas que concebeu o projecto da sonda no fim da década de 1990.