Dia 2 da “caravana humanitária”: Diogo e Fred levam uma ambulância dos bombeiros portugueses

Mais de 60 pessoas partiram de Portugal para levar mantimentos à Polónia e trazer pessoas. A “caravana humanitária”, que o P3 acompanha numa carrinha de nove lugares, partiu a 8 de Março e deverá chegar no início da próxima semana. Já está em França, rumo a Varsóvia e Cracóvia. “É emocionante a quantidade de pessoas que estão aqui a ceder o tempo delas.”

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Na Alemanha, os pequenos gestos de solidariedade são um escudo contra as agressões da guerra

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Na Alemanha, os pequenos gestos de solidariedade são um escudo contra as agressões da guerra

Às 19h, poucos quilómetros depois de terem deixado França, ninguém parece cheio de vontade de atravessar a Alemanha durante a noite. Como só teriam de chegar à Polónia na tarde de quinta-feira, estavam a discutir se deveriam acrescentar uma paragem para dormir quando Valeriia Yarema chega.

“Achava que não vos ia encontrar”, consegue dizer, antes de se fechar num abraço com uma das voluntárias da “caravana humanitária” que partiu de vários pontos de Portugal a 8 de Março.

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Valeriia Yarema e a amiga, que também viveu cinco meses em Portugal Tiago Lopes
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Tiago Lopes

Tinha preparado com uma amiga também ucraniana um jantar — dezenas de sandes, café e chá quente, chocolates — que temeu que não chegasse ao grupo, que foi ao engano parar a uma outra bomba de gasolina, uns metros à frente.

Vive na Alemanha há três anos, onde trabalha numa fábrica a “contar gotinhas” para encher frascos de verniz para as unhas. Os filhos e neto estão em Portugal, a mãe de 90 anos na Ucrânia. É “muito difícil os mais velhos fugirem da guerra”, diz. Muitos acham que não faz sentido abandonar o país, outros não têm forças nem meios para o percurso desgastante, explica.

“Portugal para mim é o segundo país”, diz, enquanto serve café (“expresso ou normal”?). Chegou aos 26 anos, ficou 18. Trabalhou na restauração e na indústria da carne, nas zonas de Torres Vedras e Vila Franca de Xira. Saiu quando o marido, que trabalhava como camionista, veio para a Alemanha.

“Agora juntou-nos aqui uma guerra. Quando era pequenina, a minha mãe dizia: temos de comprar muito açúcar e farinha para ter lá em casa porque, quem sabe, um dia pode ser guerra”. Até há poucos dias, isto era “uma brincadeira” contada em família e a amigos.

A turbulência no país não lhe entrou dentro de casa, mas não lhe sai da cabeça. O conflito não afecta só quem está fisicamente dentro daquelas fronteiras.

Na Alemanha, numa Europa a braços com o sofrimento e deslocação imposta de milhões de pessoas, sente-se no meio de dois mundos, a tentar puxá-los para si. “Estamos partidos todos”, diz.

No trabalho e nas horas que deveria estar a dormir, está “sempre na Internet, no Facebook, a tentar ajudar”. Foi assim que encontrou o grupo que agora se junta à sua volta, e lhe diz que tem de descansar, pensar noutras coisas.

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Ajudar, “da forma que podemos”, é uma forma de lutar contra a agressão — da guerra, das notícias e pedidos de ajuda, que não param de chegar. Qualquer gesto de solidariedade parece um escudo. É muito fácil esquecer-se disto quando “parece que não podemos fazer nada”, diz.

Além de bebidas quentes e comida, as duas famílias ucranianas, que viveram em Portugal, arranjaram forma de abastecer as viaturas com um desconto de cerca de 0,50€ por litro. É costume dizer-se, em viagem, que há um português em cada canto. Só nos esquecemos que eles falam muitas línguas, vêm de muitos sítios e têm formas engraçadas de nos fazer ter saudades do nosso país.

Última paragem da “caravana humanitária” antes da Alemanha

A carrinha onde vai o PÚBLICO ainda não chegou à estação de serviço que aguarda a “caravana humanitária”, mas as imagens do almoço partilhado, já quase na hora do lanche, começam a chegar ao grupo de WhatsApp que reúne as mais de 60 pessoas em viagem. “Profissionais do farnel. São do Norte, claro”, brinca-se.

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Mónica Canelas Moreira, jurista na Câmara Municipal do Porto, foi a uma conhecida confeitaria no centro da cidade e explicou a viagem que pretendia fazer. Perguntaram-lhe para quantas pessoas teriam de preparar comida. “Mais de 50”, respondeu. Disseram-lhe que podia ir buscar comida na véspera de arrancar.

Soube da “caravana humanitária” quando foi entregar mantimentos para um outro grupo de cidadãos que se preparava para também viajar até à Polónia. “Quando houver a próxima, vou”, pensou. Conseguiu o patrocínio de uma marca de carros, que também se encarregou das portagens em Portugal. Leiloou dois bolos — “os melhores bolos de chocolate do mundo”, acrescenta — e enviou mensagens de “A a Z” na lista de contactos. “Toda a gente ajudou”, diz.

A passagem nas fronteiras entre estados-membros da União Europeia continua a decorrer sem entraves, como seria de esperar.

O “pior pesadelo” de Tatiana Franchyk era ter de ser voluntária outra vez

A experiência de voluntariado na onda de manifestações na Ucrânia, entre 2013 e 2014, ajudou Tatiana Franchyk a criar e organizar rapidamente o movimento voluntário Ucrânia SOS Portugal. “Nunca pensei que teria de o repetir. Era o meu pior pesadelo”, diz, ao telefone com o PÚBLICO, a partir do Porto.

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Tatiana Franchyk DR

“Este processo é uma tentativa de organizar uma outra onda enorme, como as da Nazaré. É como surfar estas ondas”, descreve, referindo-se ao número de pessoas que fogem em direcção às fronteiras da Ucrânia.

Uma maioria esmagadora entrou na União Europeia pela Polónia, um aliado próximo com quem partilham quase 500 quilómetros de fronteira. Mas muitos também estão a chegar à Roménia, outro país fronteiriço, que, na segunda-feira, já tinha acolhido 143 mil refugiados. É lá que pretendem também começar a actuar, conta Tatiana.

“Temos ucranianos que só querem deixar a Ucrânia temporariamente e para eles é indiferente o país”, diz. Contam regressar a casa, “se a casa sobreviver”. Os pedidos chegam-lhes por Whatsapp, Telegram (muito usada na Ucrânia), Viber.

“As pessoas atravessam as fronteiras e recebem informação. Pensam: vou para Portugal, prometem alguma ajuda para os primeiros tempos e vou tentar encaminhar a minha vida lá”, diz Tatiana.

Têm sido a ponte entre pessoas que querem ajudar em Portugal e pessoas que pretendem chegar a um país em paz, muitos deles para junto de familiares e amigos. Está a ser difícil avaliar a eficiência dos esforços, porque “há muita gente que quer ajudar” e está a angariar os próprios fundos e veículos para levar bens essenciais e transportar e alojar pessoas.

“Eu já adorava Portugal, mas agora ainda adoro mais. Estão prontos para receber pessoas e ajudá-los. Ucranianos ajudam ucranianos, é normal. Mas quando portugueses abrem as suas casas a pessoas desconhecidas…”, deixa em suspenso Tatiana, o cansaço das últimas semanas a misturar-se com a emoção.

O governo lançou uma plataforma com um formulário de contacto para desenvolver “respostas operacionais distintas para as diversas necessidades apresentadas. Houve quem não esperasse por uma resposta centralizada e já tenha avançado. O PÚBLICO perguntou ao Alto Comissariado para as Migrações como avaliava a eficiência destes movimentos informais, que pretendem trazer para Portugal pessoas que terão fugido da Ucrânia, mas ainda não obteve resposta.

Diogo e Fred levam uma ambulância dos bombeiros portugueses

O GPS manda virar à esquerda na Avenue de l’​Union Soviétique. São 4h de quarta-feira, 9 de Março, o hotel está ao virar da esquina e a ironia não passa despercebida. Há uma grande discussão em Clermont-Ferrand sobre se a famosa avenida nesta cidade francesa deveria ou não ser renomeada. Semanas após a Rússia invadir a Ucrânia, a mesma discussão desperta numa carrinha de nove lugares de uma junta de freguesia portuguesa.

A “caravana humanitária”, que partiu de vários pontos de Portugal na terça-feira, 8, acordou num simpático hotel em França. Estão feitos mais de 1500 quilómetros — resta uma distância igual até à Polónia, de onde vão trazer pessoas que fugiram à guerra e pretendam vir para Portugal. Muitos terão familiares e amigos à espera, diz o movimento Ucrânia SOS Portugal.

O plano, “que será sempre o primeiro a cair”, vai repetindo o organizador João Lage, é parar em Breitmatten e Dresden, na Alemanha. Depois, alguns veículos seguirão para Varsóvia e outros para Cracóvia.

“No caminho de ida, é mais fácil controlar a frota”, diz João. Manter a “caravana” agrupada, ao alcance de dez quilómetros dos walkie-talkies que têm pendurados ao pescoço, é uma das principais preocupações do organizador. Ver as viaturas todas juntas, com as bandeiras nas janelas, tem outro impacto. “Até para passar fronteiras”, diz.

Na portagem à entrada de França, dois polícias espreitaram para dentro da carrinha onde vai o PÚBLICO, visivelmente intrigados com as bandeiras azuis e amarelas. “Trazem ucranianos?”, perguntam, num inglês improvisado. “Portugueses”, responde o condutor. Podem passar.

À porta do hotel francês, está uma ambulância dos bombeiros voluntários de Colares, Sintra. É a primeira vez que Diogo Castro, consultor, conduz um veículo de transporte de doentes não urgentes.

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“Fui jantar a casa de um amigo e, mal chego, ele começa a dizer que devíamos fazer alguma coisa”, conta. Meia hora antes de se preparar para o encontro, Diogo, 31 anos, tinha enviado mensagens a associações a perguntar como poderia ajudar. Uma delas foi a Ucrânia SOS Portugal.

Os dois amigos — Diogo e Frederico Bello (ou Fred) — falaram com o presidente da junta de freguesia onde moram, com o prior da paróquia e com o comandante de bombeiros. “Queríamos mesmo ver o que poderíamos fazer”, diz.

Ajudaram “a arranjar tradutores” e a recolher mantimentos, até que receberam mensagem da voluntária da Ucrânia SOS Portugal “a dizer que ia surgir esta caravana”.

Os bombeiros voluntários de Colares arranjaram-lhes uma ambulância. “Mostraram-nos o carro e perguntaram-nos o que achávamos”, ri-se. Tinha espaço para trazer pessoas. Era exactamente o que pretendiam, comenta o consultor que tirou uma semana entre trabalhos para fazer a viagem.

“É emocionante a quantidade de pessoas que estão aqui a ceder o tempo delas. É muito intenso”, diz. Perguntamos-lhe o que imaginam que irá acontecer na quarta-feira, quando estiverem frente a frente com as pessoas que pretendem ajudar. “Tenho pensado imenso nisso”, responde. “Agora é que vai ser o ser humano posto à prova.”

São 11h20, menos uma hora em Portugal. A “caravana” volta a partir.