“Era suicídio a Rússia entrar pelas cidades adentro”, diz major-general Carlos Branco
Antigo porta-voz do comandante das forças da NATO no Afeganistão considera que a conquista de Kiev representaria fortes baixas para as tropas russas. “A NATO não se vai meter em aventuras”, considera.
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Carlos Branco foi porta-voz do comandante das forças da NATO no Afeganistão entre 2007 e 2008 e é, actualmente, major-general do Exército Português na situação de reserva.
Ao ter como alvo população civil, é seguro dizer-se que a Rússia já cometeu crimes de guerra neste conflito?
É preciso perceber em que circunstâncias isso acontece. Se houver uma intenção deliberada de atacar civis, não há dúvida de que é crime de guerra. Se as vítimas civis decorrerem de um dano colateral, a análise poderá merecer uma avaliação diferente. Essa questão coloca-se igualmente às forças armadas ucranianas, temos de ver isto dos dois lados da batalha. Sobretudo quando falamos da região do Donbass, onde há muita evidência de ataques à população civil. Se de facto se provar que os civis são alvo prioritário, não há qualquer dúvida.
A Rússia tem dificultado a saída de civis das áreas de perigo, a Ucrânia denunciou mesmo bombardeamentos de corredores humanitários. Vê alguma razão para isto do ponto de vista estratégico?
Não estou a dizer que os russos não bombardeiam as colunas civis, mas não se pode confiar numa fonte ucraniana sem haver confirmação desse acontecimento por fontes independentes. Cada facção conta os acontecimentos da forma que lhe parece mais favorável. Fazendo esta ressalva, não estou a ver militarmente o que a Rússia ganha em impedir a saída dos civis. Pelo contrário. Quem tem mais a perder do ponto de vista de imagem pública e de julgamentos em tribunais internacionais é a Rússia. Mas basta existir um indivíduo a disparar um tiro para existir um descontrolo da situação. Não podemos ver estas questões de forma simplista. Não estou a dizer que as tropas russas não façam isto, atenção. Apenas a alertar para a necessidade de double check.
Além de Kiev, os principais alvos russos têm sido cidades portuárias. Isolar a Ucrânia do mar Negro é fundamental para esta operação militar?
Não é crucial para a operação, mas sim para o que acontecer a seguir no processo negocial. A ocupação dessas zonas pode servir de moeda de troca à mesa das negociações.
A capital ficará então para último alvo?
Tudo indica que sim, mas não podemos admitir à partida que a cidade será ocupada. Seria um esforço militar extremamente oneroso, com muitas baixas e a Rússia ficaria com uma imagem internacional ainda pior. Há várias formas de fazer capitular a cidade.
A Rússia tem mais militares, veículos blindados, tanques, aeronaves…há alguma explicação para não terem conseguido capitalizar essa vantagem?
Há uma coisa que tem de ser clara: não se pode pensar que se conquista um país da dimensão da Ucrânia em três dias. Essa notícia dada pela comunicação social após a invasão do país… não sei se alguma vez o Kremlin teve esse pensamento. Atribuir essas expectativas ao Kremlin parece-me precipitado. Além de ser um país 1,4 vezes maior do que o Iraque, a Ucrânia tem sensivelmente 40 milhões de habitantes. É muito difícil conquistar um país desta dimensão numa semana ou em dez dias. Mas há quem atribua a lentidão russa — especialmente a norte — à resistência ucraniana. Não tenho dúvidas de que esta resistência tem desempenhado papel muito importante, foi tenaz e com militares muito equipados. Os russos têm avançado de forma metódica para reduzir o número de perdas.
A Rússia terá contratado mercenários sírios para os combates urbanos que se avizinham. A Ucrânia tem vantagem neste tipo de luta?
A Rússia não precisa de meia dúzia de mercenários sírios, tem lá 70 mil tchetchenos para resolver estes problemas. Era um suicídio a Rússia entrar pelas cidades adentro, podem obter a capitulação de outro modo. Por isso é que vejo vantagem operacional no abandono das cidades pelos civis. Podem resolver o problema com os combatentes e sem provocar mortes civis. Quase que parece uma operação da Idade Média com o cerco das cidades. Há cidades que ainda mantêm a luz e o gás, como é o caso de Kiev, mas Mariupol já não. Temos de perceber as razões que justificam variantes na táctica.
Há uma semana, o major-general disse que a intenção da Rússia não seria conquistar o país, mas sim algumas zonas estratégicas. Mantém essa opinião?
Sim, até porque não faz sentido conquistar todo o território ucraniano. A Rússia não tem capacidade militar para isso e porque a população que se encontra a oeste do Dnipro é muito hostil à Rússia. Iria causar muitos problemas e um overstretch do dispositivo russo. Nas zonas a oeste, os russos têm feito ataques cirúrgicos a alvos militares. Mas fazem-no com muita cautela porque não têm superioridade aérea nessa zona.
Como avalia a actuação da NATO neste conflito?
Não quero tomar posição favorável ou contrária, mas parece-me que é a actuação expectável e tinha sido manifestada em várias circunstâncias: a de que a NATO não iria intervir com forças militares neste terreno, iria limitar-se fundamentalmente a dar apoio. Mais do que a NATO, têm sido os países da NATO a proporcionar esse apoio directo. Deste ponto de vista, a NATO tem-se limitado a fazer declarações políticas de apoio à Ucrânia e condenação da actividade russa, algo que me parece expectável.
Mais do que isso seria perigoso?
A NATO tem de ter muita cautela, já deixou claro que não iria alimentar uma zona de exclusão aérea. Isto é um indicador de que a NATO não se vai meter em aventuras. Isso teria consequências dramáticas e iria, muito provavelmente, ser responsável por uma nova guerra mundial.
Como vê a ameaça nuclear feita pela Rússia? Existe algum perigo da utilização deste armamento?
Parece que acordámos ontem. A Rússia tem tomado sistematicamente este procedimento em momentos de tensão, nomeadamente na crise da Crimeia. Isto faz parte do playbook de procedimentos da Rússia. [Com esta ameaça] Putin está a dar indicações à NATO e aos Estados Unidos da América de várias coisas. Em primeiro lugar, a de que reagirá de forma muito violenta se porventura houver a ambição de constituir uma força ou coligação para intervir na Ucrânia. De certa forma, é a resposta que a Rússia tem ao reforço da NATO na Roménia e na sua fronteira leste. Nesta altura, como tem o seu efectivo balanceado para a Ucrânia, tem vulnerabilidades na sua fronteira. Não me parece, sinceramente, que a NATO tivesse a veleidade de fazer uma operação militar nas fronteiras com a Rússia, explorando esta concentração na Ucrânia. Para mim, não faz sentido.
A Rússia está absolutamente isolada no plano internacional, com as mais recentes sanções. O domínio de Putin poderá estar em risco?
Seguramente que é o momento mais crítico. Apesar de a Rússia estar preparada e ter tomado medidas para enfrentar este revés, tenho muitas dúvidas de que a Rússia tenha conseguido prevenir a dimensão das sanções. A Rússia vai sofrer bastante e será muito castigada. Isso é incontornável. E isso pode ser a grande ameaça a Putin. Mas acho que é um bocado arriscado, não conhecendo as dinâmicas de poder na Rússia, fazer esse exercício. Podemos estar a correr o risco de alinhar em campanhas de desinformação.
Essa desinformação que menciona é fundamental nestes conflitos armados?
Nem é preciso ser um conflito armado, é algo que está presente sempre que há conflitualidade de interesses. É evidente que, no caso de um conflito armado, a parada sobe bastante. Agora, colocou uma questão interessante porque em termos de princípio todos concordamos que há desinformação. O problema é termos a percepção de quando é que ocorre essa desinformação.