Eu não sei explicar a guerra às crianças…
É que explicar as motivações de uma guerra às crianças implica contrariar todos os valores que andamos a tentar transmitir-lhes, como a tolerância, a empatia, o respeito pelo outro, o diálogo e a solidariedade.
É verdade: eu não sei explicar a guerra às crianças. Quanto mais penso no assunto, mais difícil me parece explicar o inexplicável…
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É verdade: eu não sei explicar a guerra às crianças. Quanto mais penso no assunto, mais difícil me parece explicar o inexplicável…
Como explicar a guerra às crianças? Desde que começou a guerra na Ucrânia, tenho feito esta pergunta a mim própria dezenas de vezes. E, quanto mais me questiono, mais chego à seguinte conclusão: não sei. E não, não se trata de um “não sei” apressado de quem não de deteve a pensar no assunto. Não, este é um “não sei” que resulta de inúmeras tentativas falhadas para encontrar palavras para explicar o inexplicável às crianças.
Claro que podemos tentar começar pela parte mais racional das explicações geopolíticas, históricas e afins. Podemos, claro que podemos, mas a questão é que estas explicações não explicam o que há de pior e de mais ameaçador nas guerras que, na sua maioria, como refere António Barreto, “são feitos macabros de violência e irracionalidade”, que ainda se tornam mais difíceis de explicar quando nem sequer os podemos enquadrar entre as “guerras justas e de libertação”, diferentes das “injustas e de opressão ou conquista”.
É que explicar as motivações de uma guerra às crianças implica contrariar todos os valores que andamos a tentar transmitir-lhes, como a tolerância, a empatia, o respeito pelo outro, o diálogo e a solidariedade. O mais disruptivo e inexplicável é que uma guerra suspende os valores humanistas que procuramos incutir nos nossos filhos e netos, tal como salienta António Barreto: “Uma guerra põe entre parêntesis o que de melhor tem a humanidade: a moral, o direito, a bondade, o belo e o amor. Para já não falar da razão e da justiça.” E isso é o mais terrível e, também, o mais inexplicável.
É precisamente a crueza dessa verdade que eu não sei explicar às crianças: como é possível negar os valores humanistas que andamos a promover, colocando em causa aquilo que a humanidade tem de melhor? Falar da guerra é nomear os antónimos das palavras que António Barreto utilizou, chamando pelos nomes aquilo que a humanidade tem de pior: a imoralidade, a falta do direito, a maldade, a fealdade e o ódio. Já para não falar da irrazoabilidade e da injustiça.
Falar destes antónimos é sinónimo de desencantar as crianças. Traduz-se dizendo que, quando parte da humanidade faz deliberadamente mal a outra parte da humanidade, algo está profundamente errado com a humanidade ou, pelo menos, com parte da humanidade. A constatação da negação dos valores que nos são mais caros instaura a perplexidade e a dúvida. Abre caminho à desilusão e ao receio.
É que, ainda para mais, não me convencem minimamente sugestões como tranquilizar as crianças dizendo que a guerra está longe e não nos afecta directamente. Primeiro, porque nos vai afectar, mesmo que, na melhor das hipóteses, não seja tão directamente. Segundo, porque desdramatizar o perigo com a distância é uma forma de dizer que com o mal dos outros podemos nós bem. E se os valores que promovem a paz assentam no desenvolvimento da empatia, de que empatia falamos quando afirmamos que as bombas que caem em cima dos outros têm a grande vantagem de não nos matarem a nós?
Promover a empatia dizendo que aquilo que está a acontecer aos outros pode acontecer-nos a nós, sugerindo às crianças que se coloquem no lugar do outro e imaginem que estão em Kiev, também não me parece, de todo, apropriado. Antes pelo contrário. É demasiado aterrorizador para as crianças, e para nós próprios, imaginar as nossas casas a caírem, as nossas famílias a fugirem em longas filas de carros e, pior ainda, os nossos familiares a morrerem vítimas da guerra. Sobretudo, quando ninguém sabe que mais poderá ainda acontecer.
É por todos estes motivos que, quanto mais penso, mais chego à conclusão de que não sei. Por mais que tente, não consigo encontrar uma explicação para explicar o inexplicável. Quando as palavras parecem faltar-nos, podemos permitir que as crianças sejam expostas às nossas verdadeiras emoções perante esta realidade, não lhes escondendo a perplexidade, a tristeza, o repúdio, a indignação, a condenação. É disso que precisamos quando as explicações não parecem suficientes para explicar o inexplicável: de emoções autênticas. Nestas circunstâncias, uma emoção verdadeira pode valer mais do que mil palavras.
Mas há palavras das quais não podemos abdicar e é imprescindível que o digamos claramente às nossas crianças. Entre estas contam-se as palavras moral, direito, bondade, belo, amor, razão e justiça. Apesar de a realidade parecer contradizê-las, estas palavras continuam a fazer todo o sentido e constituem, sem sombra de dúvida, os alicerces do mundo em que desejamos viver. Agora, mais do que nunca.