Eu tenho uma doença
Não tenho qualquer medo de morrer, mas estou apavorado por não conseguir viver. Passo grande parte do dia deitado na cama, porque é a única posição onde as minhas dores não agravam. Vivo numa cela.
O que custa não é saber que vamos morrer. O que custa é não saber como vamos viver. Eu tenho uma doença. Não sei se mata, mas sei que me tirou a vontade de viver. Ou, por outra, eu vontade até tenho... não sei é como hei de viver.
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O que custa não é saber que vamos morrer. O que custa é não saber como vamos viver. Eu tenho uma doença. Não sei se mata, mas sei que me tirou a vontade de viver. Ou, por outra, eu vontade até tenho... não sei é como hei de viver.
O que eu sei é que já não tenho vida há muito tempo, apesar de tentar e tentar que não seja assim. Mas a verdade é que neste momento já não sei o que estou aqui a fazer, e dou por mim a pensar que se for assim, não quero viver. E estes pensamentos, não vêm da revolta, não vêm da angústia de um dia mau... vêm de uma reflexão maturada, calma e racional de quem já não sabe de que forma é que se usa a imaginação para viver, com aquilo que a vida me tirou, e não parece estar com vontade de voltar a dar.
Há um ano e meio que tenho dores. Há um ano que já não consigo trabalhar pelas dores. Quando quiserem desejar mal a alguém, desejem-lhe ter dor crónica. É como se estivéssemos em guerrilha desleal com nós próprios, 24 horas por dia. Comecei um périplo diagnóstico durante meses e meses, que até já perdi a conta a quantos médicos é que já fui, quantos caminhos percorri, e quantas vezes dei com a cabeça na parede por estar a perder tempo, dinheiro e desespero por não ir a lado nenhum.
Ter um inimigo dentro de nós, é uma merda. É uma sabotagem constante a nós próprios. E ter um inimigo desconhecido é, em si só, uma dor inimaginável. No início, fui estóico. Achava que ia passar, e ia aguentando as dores. E quanto mais trabalhava mais dores tinha. As minhas dores são essencialmente nos pés, e agravam quando estou algum tempo sentado ou de pé. Dor de características neuropáticas, com formigueiros, sensação de frio ou queimadura, choques eléctricos, hipersensibilidade ao toque, etc...
Durante a segunda vaga, trabalhei com muitas dores, e quanto mais queria estar à altura do desafio, mais dores tinha. E, por isso, entrei em burnout... por dores. Por muitas outras coisas, mas essencialmente por dores, e por uma total ausência de alegrias na minha vida. Procurei ajuda, reforcei alguns mecanismos, olhei para dentro com mais cuidado, e voltei à luta onde tanto queria estar... Aguentei a terceira vaga até ser evidente que a tempestade já tinha passado, e saí do hospital banhado em lágrimas, para tomar conta de mim. “Mais um dia, mais uma semana, mais um bocadinho”, dizia eu para mim próprio. Mas estava a enganar-me, estava a fazer muito mal a mim próprio.
Depois de deixar de trabalhar parece que sofri ainda mais. Sentia-me culpado por não conseguir, sentia-me frustrado por já não saber quem era, sentia-me numa solidão indescritível.
Toda a minha vida me queixei de não ter tempo para fazer tudo o que queria. Agora, tinha todo o tempo do mundo, e não queria fazer nada. Nada.
Tantos sonhos que eu tinha... que num estalar de dedos desapareceram. Todos. E não sonhar é quase sinónimo de perder a alma.
Não tenho qualquer medo de morrer, mas estou apavorado por não conseguir viver. Passo grande parte do dia deitado na cama, porque é a única posição onde as minhas dores não agravam. Vivo numa cela. E toda a vida fiz esse exercício sustentado na vida de Mandela e Mujica, de como seria viver numa. Mas, pese embora uma cela física ser dos piores desafios que uma pessoa pode ter, uma cela criada por nós é algo que não tem escape.
Por vezes, agarro-me à esperança. Por outras, a esperança é a pior coisa que podemos sentir. Ser médico talvez não ajude, por ter um pensamento demasiado objectivo... nestas alturas bem melhor seria acreditar em unicórnios, mas por mais que eu esteja a sofrer, não consigo mentir a mim próprio, nem sair do meu ateísmo convicto. Tentei usar a minha imaginação para recentrar objectivos de vida, fui treinando na mente algo que considero elementar para a nossa saúde mental: o saber perder. Sempre vi o sofrimento como uma oportunidade de aprendizagem e crescimento, mas demasiadas vezes sinto-me um hamster num rodopio de pensamentos que não levam a lado nenhum.
Não tenho qualquer simpatia por pessoas que têm a presunção de ensinar os outros a viver, mas num plano imaginário, era isso que eu queria, que alguém assumisse o controlo das minhas ideias e das minhas decisões, e eu fosse apenas um executor de tarefas... Mas parece que a vida não é assim, mal ou bem, temos que ir buscar tudo dentro de nós, e daí que talvez a única ajuda que podemos ter, é alguém(ns) que nos ajude a pensar, que nos faça as perguntas certas... Nunca devemos procurar respostas feitas. Devemos procurar perguntas, porque as respostas têm de estar dentro de nós. É importante não desistirmos de nós próprios, e para isso ajuda muito ter pessoas que não desistem de nós. Pessoas que estão ao lado, que tentam compreender, que querem ouvir. Não ajuda dizer “vai ficar tudo bem”, quando provavelmente não vai, mas ajuda muito estar ao lado... nem que seja sem dizer nada.
Fui tendo mais tempo para fazer algumas coisas. Apesar de não conseguir ter um aproveitamento do tempo minimamente comparável com o meu “normal”, ia tendo mais capacidade de me dedicar ao meu activismo, com alguma escrita, formações, palestras e por aí fora... Será que este alimento me chega para viver? Provavelmente não, mas é um caminho que vai sendo feito aos tropeções. Nunca quis ser uma pessoa que fala e não faz. Não. Eu sempre quis ter as mãos nos doentes. Nunca quis ser muito mais do que ser médico, porque as melhores memórias que eu tenho são quando vejo anos de estudo, trabalho e treino transformados em vidas. E talvez por isso, o único momento, o único dia que eu guardo com carinho destes últimos tempos, foi quando fui médico fora do hospital. Numa hora de almoço, no ginásio que eu frequento e que é colado a minha casa aconteceu uma paragem cardíaca. E pior, era um amigo meu. E, para doer ainda mais, com a mulher dele ao lado e muitos amigos dele e meus a assistirem.
Estive muito tempo a fazer compressões cardíacas sozinho, e quando chegou a equipa médica do INEM tive que assumir a liderança por ter mais experiência em reanimação. Foi um espectáculo dantesco, com direito a muitos choques eléctricos, períodos de recuperação da circulação com uma agitação ingerível do meu amigo, necessidade de o anestesiar e intubar no meio do ginásio com entradas e saídas de paragem cardíaca até ser levado ao hospital. Muitos dias nos cuidados intensivos e uma recuperação a 100% deram-lhe uma segunda oportunidade nesta vida. Fiz o que qualquer médico com a minha formação faria, mas fi-lo bem. Se não tivesse esta doença, não estaria em casa a esta hora de almoço, e o meu amigo estaria morto. Destino para uns, coincidências, acasos, aleatório para quem pensa como eu. É das poucas coisas que me deixa feliz neste triste caminho que tenho percorrido... a minha doença deu a segunda vida a um amigo, uma pessoa excepcional, por acaso também médico e pai de duas filhas.
Passados muitos meses, tive algumas pistas diagnósticas. As notícias não eram propriamente boas, mas era um passo para fora da escuridão. Até esse momento eu até poderia estar a mentir. A dor neuropática é uma coisa que só nós sentimos. E perdi a conta à quantidade de pessoas que me conhecem bem que achavam que “isso é do stress... é psicológico... tiveste um ano difícil com a pandemia...” Foda-se, eu aguentava dez pandemias com um sorriso na cara se não tivesse dores. Eu não verbalizo, eu meto para dentro, mas estou muito magoado com muita gente, embora saiba que o não dizem ou fazem por mal.
Fiz uma biópsia de pele que mostrou ter uma neuropatia de pequenas fibras, ou seja, os terminais periféricos sensitivos dos meus nervos estão doentes. Porquê? Porque tenho um anticorpo antineuronal (anti-SOX1) que destrói essas pequenas fibras dos nervos, portanto é um mecanismo auto-imune, em que o meu corpo decidiu fazer mal a si próprio. Porquê? O mais frequente é este anticorpo ser produzido por um síndrome paraneoplásico, ou seja, uma neoplasia (um cancro) que o produz. Então eu andei à procura de um cancro.
Acreditem ou não, eu nem pestanejei com esta informação. A ideia de ter uma doença que me tirasse a vida a curto/médio prazo não me fez acelerar nem um batimento cardíaco, tal o sofrimento do que estou a viver com a vida que tenho. Uma parte de mim, até o desejava. Podia ser que o dito cancro tivesse cura, e se não tivesse, encontrava o meu fim em paz, com a sensação que fiz o que pude enquanto cá estive. Mas não tenho nenhum cancro. Ou pelo menos para já, porque vou ter que andar à procura de seis em seis meses (deve ser por agora, que volto a repetir os exames).
Bom, então de onde vem este fdp de anticorpo? Não se sabe... Neste universo, há muito mais coisas que não sabemos do que as que sabemos. Há quem invente coisas sobre o que não sabe, há outros que assumem a sua ignorância e vão tentar aos poucos saber mais... eu jogo na equipa deste segundo grupo. Gostava de ter uma doença com um nome, algo que me permitisse perspectivar um futuro ou possibilidades de um futuro... mas, nem isso tive direito. Gostava de ter um grupo de doentes e familiares como há para o cancro, para a esclerose múltipla, para a ELA ou todas as outras. A mim até a essa solidão me entregaram. Não deixa de ser interessante pensarmos que há certas doenças que têm um enorme impacto na opinião pública, e outras que causam muito mais sofrimento são de enorme incompreensão e fazem com que as pessoas sofram muito mais, e mais sozinhas...
Há uma grande dissonância entre a minha aparência e a minha doença. Por um lado, ainda bem; por outro, torna tudo mais cruel. Não vou dizer o que eu preferia ter ou não em vez desta merda, porque é sempre um exercício injusto comparar desgraças. Mas o maior limitador da minha existência é que as minhas dores agravam em determinadas posições, sentado e em pé. Esta é a razão pela qual não consigo trabalhar no hospital. A dor é cumulativa, se num dia eu “abusar”, no dia seguinte arranco dum patamar superior.
Em Novembro, fiz uma tentativa de voltar ao trabalho... soube-me tão bem: sentir-me uma pessoa novamente, sentir que ainda podia ser útil, que podia ajudar pessoas, que podia ensinar os mais novos, que podia ver gente e dizer olás... Só consegui aguentar quatro dias... e foram dias muito light... e mesmo passando os três dias seguintes deitado na cama, que é a posição que me permite regredir nos patamares de dor, consegui voltar ao que estava. Foi uma derrota pesada, mas que tinha que acontecer. Até então estava numa certa ilusão de que, mais dia, menos dia, iria voltar a trabalhar... e é muito importante não mentirmos a nós próprios, para tentar construir as soluções com o que temos.
Há coisas que eu consigo fazer. A minha força muscular está intacta... para já. Andar a pé, de bicicleta, nadar, ginásio sem impacto... A corrida agrava-me muito as dores. No Verão, arranquei de bicicleta de casa e só parei no Algarve. Apenas piorei ligeiramente, mas na viagem de regresso de comboio fiquei cheio de dores. É estranho, até irónico, mas é o que é. Ninguém sabe as lutas internas que cada um tem quando vai na rua... É por isso que temos que cultivar a nossa bondade.
Há três coisas que eu odeio que me digam:
1) “vai correr tudo bem”
2) “já tentaste medicinas alternativas?”
3) “Já foste lá fora?”
Soluções simples para questões complexas, não existem. Quem está a sofrer há muito tempo, não precisa de bitaites. Precisa de alguém para estar ao lado, para ouvir, para partilhar. Precisa de amor. O amor, sim, cura tudo.
Claro que houve vermes negacionistas que, para alimentar as suas paranóias, usaram a informação de que eu estou doente para sabotar as minhas posições sobre a pandemia. São vermes por usarem a doença de alguém para o denegrir, misturando este facto com mentiras para que morresse mais gente. Mas eu consigo escrever, e consigo pensar, e consigo estar em frente a um computador ou uma câmara, e perante a impotência de não poder ajudar os doentes, tentei ainda mais ajudar com as palavras, com o coração, com a boa informação cada vez que me davam essa oportunidade. Esforcei-me muito por isso, pela minha equipa, por todas as equipas do país, e acima de tudo pelos doentes e seus familiares.
Voltaria a fazer tudo igual, ou melhor se conseguisse. Tenho orgulho nisso, mas não vivo de aplausos. Desde há muitos anos que percebi que a vaidade é destrutiva, assim como a revolta. Cultivo a humildade e não vivo revoltado por as pessoas estarem indiferentes ao facto de haver uma guerra no Congo, onde deixei sangue suor e lágrimas, ou por eu ter uma doença que não tem cura. Estou triste, desiludido com muita gente e até comigo, por tantas vezes não ter a força para lutar que gostaria, mas nunca dei por mim a perguntar “porquê eu?”, porque no meio de oito mil milhões de pessoas, as mais variadas coisas acontecem às mais variadas pessoas. As coisas acontecem, e nós temos que aceitar, porque o mundo não gira à nossa volta.
Mas foram muitas tristezas enxertadas umas em cima das outras... O fim de uma relação que me destruiu, a separação dos meus pais que foi muito dura para as pessoas mais importantes da minha vida, a pandemia que encostou pessoas como eu às cordas sem piedade, e uma doença que aos poucos me tirou toda a alegria de viver. Não há nada que dure para sempre... acredito que qualquer dia vou voltar a sorrir, e o sofrimento é de longe a melhor escola da vida, embora todos dispensássemos estes ensinamentos.
Vivo numa cela, mas continuo a sonhar com o mundo. A sensação que tenho é que me faltam 40 anos para morrer. E não sei o que fazer com eles. Talvez possam ser menos se tiver sorte, mas até lá gostava de reaprender a viver. Só que não é fácil. Quero muito lutar por um mundo mais justo, mais humano, onde não sejam tantas as mães a chorar a morte dos seus filhos.
Não vale a pena viver a não ser por algo que estejamos dispostos a morrer. No meu caso, é a minha família, os meus amigos e a paixão de lutar por um mundo melhor.
Perdi todos os sonhos que tinha, mas prometo esforçar-me por reaprender a viver.
É bom falar e/ou escrever o que sentimos, porque é disso que somos feitos, e por isso partilho... E também porque a minha psicóloga me disse que me faria bem, e porque pode ser que as minhas palavras ajudem alguém, ou mesmo alguém me ajude nesta luta inglória.
Eu tenho uma doença.