De Grozni a Alepo, o manual de destruição que a Rússia pode aplicar na Ucrânia

Acordos de cessar-fogo não respeitados, bombardeamentos indiscriminados e cercos a cidades são tácticas que as forças russas usaram na Tchechénia e na Síria.

Foto
Um edifício da Universidade de Kharkiv completamente destruído depois de um bombardeamento Reuters/OLEKSANDR LAPSHYN

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.


“Ele agora vai fazer à Ucrânia o mesmo que fez em Alepo, não vai?”, questiona Ahmad al-Khatib. Entrevistado pela Al-Jazeera, este homem sírio que se refugiou na Turquia lembra os dias em que foi a sua cidade natal a estar debaixo do fogo russo: “Havia bombas e sangue em todo o lado. Dormíamos e acordávamos com o som de caças a voar e de ataques aéreos. As casas abanavam, as crianças choravam e nós estávamos todos à espera da morte.”

No discurso de Al-Khatib, “ele” é o Presidente russo, Vladimir Putin, que em 2015 mobilizou as suas tropas para ajudar Bashar al-Assad na guerra civil que já leva mais de uma década na Síria. No final do ano seguinte, a zona oriental de Alepo era conquistada pelo regime às forças da oposição, com a preciosa ajuda da força aérea da Rússia, que reduziu praticamente a ruínas uma das cidades mais antigas do mundo.

“A ameaça que ouvimos durante quatro anos – ‘morram de fome ou rendam-se’ – transformou-se em ‘rendam-se ou acabamos convosco’”, resumia um membro da oposição síria à Reuters, em Setembro de 2016, quando Assad anunciou uma nova ofensiva para tomar o controlo de Alepo. Nos três meses seguintes foram bombardeados hospitais, depósitos de água, prédios residenciais e até colunas de ajuda humanitária, enquanto as tropas do Governo cercavam a cidade. Em apenas uma semana morreram mais de 300 civis. Sucessivos acordos de cessar-fogo para o estabelecimento de corredores humanitários foram quebrados ao fim de poucas horas.

Qualquer semelhança com a guerra na Ucrânia não é pura coincidência, alerta quem acompanhou as acções militares russas tanto na Síria como na Tchetchénia, no início deste século. “Os cercos já existiam na Síria antes de a Rússia se envolver, mas a Rússia instrumentalizou-os. [Os russos] ajudaram a apertar os cercos e certificaram-se de que a ajuda e outras coisas importantes não podiam entrar nem sair, só com negociação”, disse Emma Beals, antiga jornalista e actual analista no European Institute of Peace, à Foreign Policy.

Falhada a conquista rápida de Kiev, devido à forte resistência ucraniana e aos problemas logísticos enfrentados pelas suas tropas, a Rússia parece ter optado por uma estratégia de cerco à capital e de bombardeamentos em larga escala em cidades como Kharkiv e Mariupol, recorrendo até a explosivos de fragmentação, que matam indiscriminadamente e estão proibidos desde 2008 (embora a Rússia não tenha subscrito esse acordo). Em dez dias de guerra, a ONU confirma a morte de 364 civis ucranianos, embora a própria organização admita que o número real deve ser bastante mais elevado.

“Eles usaram tudo o que podiam em Alepo”, disse à Al-Jazeera outro homem sírio que também estava na cidade em 2016. “Por muito que eu não queira ver isto, não me surpreenderia se começassem a usar os mesmos aviões, bombas e mísseis para atingir civis na Ucrânia”, acrescenta. Segundo o Observatório Sírio de Direitos Humanos, entre 2015 e 2017 morreram pelo menos 5700 civis em ataques aéreos russos.

Até agora, apesar dos bombardeamentos já registados em Kiev, a estratégia russa parece apontar para um cerco e não para o carpet bombing – ataques intensos e indiscriminados – verificado na capital da Tchetchénia, Grozni, que as tropas russas transformaram na “cidade mais destruída do mundo” entre 1999 e 2000. Isso tornaria difícil, se não mesmo impossível, pacificar a população ucraniana e instalar um novo governo.

Mas algumas descrições da época soam familiares. Um relatório sobre refugiados tchetchenos dos Médicos Sem Fronteiras, publicado em Dezembro de 1999, enumera “ataques implacáveis das tropas russas contra alvos civis”, “ataques a grupos de refugiados” e a impossibilidade de prestar “qualquer ajuda aos feridos, doentes e mais vulneráveis.”

“Na altura também falavam em ataques a alvos específicos”, disse à RFE o director da ONG russa de direitos humanos Memorial, Aleksandr Cherkasov. “Mas que alvos específicos? No centro de Grozni, em que em vez de atingirem os sítios onde as milícias [islâmicas separatistas] se reuniam, atingiam o mercado, a mesquita, os telégrafos e a maternidade?”, questiona.