Matar russos
Crónica do enviado do PÚBLICO à Ucrânia.
As sirenes têm tocado menos. O mais difícil é durante o sono. O acordar e o vestir rápido. Há pessoas que já dormem vestidas. Até calçadas. Nunca se sabe quando as bombas começam a cair do céu. E onde caem.
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As sirenes têm tocado menos. O mais difícil é durante o sono. O acordar e o vestir rápido. Há pessoas que já dormem vestidas. Até calçadas. Nunca se sabe quando as bombas começam a cair do céu. E onde caem.
É tudo muito calmo. Não existe confusão. Não existe histeria. Pela cidade há vários locais de abrigo. Hotéis, livrarias, teatros e prédios de habitação. Tudo está preparado para a maior protecção possível. As pessoas sentam-se em cadeiras ou no chão. Quase não conversam. Dialogam com o telemóvel quando a rede permite. Depois é esperar que a sirene deixe de uivar. Pode demorar meia hora, duas horas… demora o tempo necessário. É aguentar.
As ruas voltam a estar cheias de gente. Falso alarme. A vida continua. O trânsito é caótico. As pessoas são formigas em vários carreiros. Paro junto a uma igreja. Está em obras de restauro. Os andaimes com a lona verde deixam espreitar os santos. As obras estão paradas. Em tempo de guerra não se cuidam de santos. Empurro a porta pesada. É enorme. Centenas de pessoas escolhem o seu canto. Rezam. Colocam velas. Pedem ajuda. Cheira bem. Um cheiro doce. A bandeira da Ucrânia. Muitas fotografias de homens. Novos e velhos. Todos soldados. Todos mortos. Flores e choros. Timidamente vou fotografando. Não quero ser intruso na força da crença. Uma mulher magra e com um gorro vermelho, fala baixinho e chora compulsivamente. No meio de tanto homem estará certamente o seu. Marido ou filho. É grande a dor. A puta da guerra. O cabrão do ódio. Saio do templo das preces e do sofrimento. O frio invade a minha cara. Sabe bem.
Militares dão formação a voluntários que querem matar russos. Aprendem a manejar uma arma, uma granada, a ter pontaria, a saber atacar. Numa tarde fazem a recruta de meses. Os seus rostos estão cabisbaixos. Uns adoram a guerra. Sente-se uma alma belicista nos homens ucranianos. Outros sentem medo. Receio de não acertar no peito ou na cabeça de um russo. Cheira a carne. A carne que vai alimentar os canhões. Falo com um, falo com outro. Até me apontam a AK-47 como se eu fosse um russo. E riem de felizes. Uma felicidade falsa. Nervosa. Alguns acabaram a puberdade há muito pouco tempo.
Não sei quem será. Quantos serão. Mas as suas fotografias irão forrar mais uns metros de parede. E mulheres virão. Chorar com flores nos braços.