A vida na Rússia: “Ia dizer que é uma catástrofe, mas isso é o que está a acontecer na Ucrânia”
Um português a residir na Rússia conta como a vida está, aos poucos, a deixar de ser “uma vida normal”. Anjelica saiu do país rumo a Portugal. Conta que tem “vergonha” de dizer que é russa.
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Anjelica não quis esperar. Assim que os acontecimentos se precipitaram e a Rússia invadiu a Ucrânia, a 24 de Fevereiro, iniciando uma guerra sem fim à vista, começou a tentar sair do país, com o companheiro. O destino final - espera - será Portugal, conta esta russa que só aceita falar porque já não está no seu país de origem.
Para lá das fronteiras russas, as sanções impostas já se começam a fazer sentir, sobretudo no aumento dos preços, maior dificuldade no acesso ao dinheiro e na procura desenfreada por alguns produtos de marcas ocidentais, que já encerraram ou avisaram que vão suspender as operações na Rússia.
Um português a viver no país governado por Vladimir Putin, e que pede para não ser identificado, diz que, além da divisão dos que são a favor e contra a intervenção militar, o que o rodeia é “gente traumatizada pelos acontecimentos, e a consciência de um conflito com consequências irreversíveis entre irmãos, entre povos com profundos laços culturais e históricos”.
A aguardar um voo para Portugal, e já fora da Rússia, Anjelica, acompanhada do companheiro, traça um retrato rápido dos dias que lhe mudaram a vida, subitamente: “No dia 22 de Fevereiro, Putin anunciou que reconhecia a independência das repúblicas de Lugansk e Donetsk; no dia 23 foi feriado, Dia da Pátria; a 24, quando acordámos, a Rússia já tinha entrado na Ucrânia.”
O casal, que pretendia iniciar um processo de pedido de residência em Portugal, decidiu que não podia esperar mais e a tentativa para sair da Rússia rapidamente já esbarrou em algumas das consequências das sanções, entretanto impostas pelo Ocidente. A 25 de Fevereiro começaram a tentar comprar um voo de saída do país, com destino a uma capital europeia, mas a companhia low cost a que recorreram já não tinha oferta. “No domingo de manhã decidimos comprar um bilhete através de uma companhia normal”, explica.
Chegaram ao destino intermédio da viagem rumo a Portugal a meio da semana, deixando para trás o negócio, a casa e os animais de estimação entregues a familiares. Saíram com duas malas e duas mochilas, com a intenção de não regressar até terem título de residência no nosso país. “Logo após o início da guerra o valor do euro subiu duas vezes. Os bancos deixaram de vender divisas e só podíamos sair com 8500 euros por pessoa. Na fronteira perguntaram para onde íamos e se tínhamos bilhete de regresso. Dissemos que íamos de férias e que ainda não tínhamos bilhete de volta porque não sabíamos quando vamos regressar”, conta.
O português com quem o PÚBLICO falou ainda continua na Rússia e confirma que apesar de não existirem restrições no acesso a bens essenciais, e de as pessoas continuarem a fazer uma vida “relativamente normal”, já há consequências a fazerem-se sentir na vida quotidiana. “Há um aumento de procura de levantamento de dinheiro. Com cartão europeu, deparamo-nos por vezes com dificuldades para levantar dinheiro nas caixas multibanco das redes bancárias que foram banidas da rede SWIFT.”
Conta ainda que ouviu relatos de que, no início da semana, havia “filas à porta das caixas multibanco para levantar euros”. “O rublo está a cair a olhos vistos e o preço dos produtos de consumo também está a aumentar”, explica. Anjelica diz mesmo que alguns produtos, de um dia para o outro, “aumentaram 30%”.
Marcas ocidentais saem da Rússia
Desde o início da guerra – principalmente a partir do momento em que Europa e EUA congelaram parte das reservas de divisas estrangeiras do banco central russo – o rublo perdeu 32% do seu valor face ao dólar. Uma desvalorização desta dimensão, combinada com os entraves colocados à importação de bens vindos do estrangeiro, conduz inevitavelmente a uma subida acentuada da inflação, que, mesmo com o banco central a subir as taxas de juro para 20%, tem tudo para se agravar nas próximas semanas.
E se, nos supermercados, a situação ainda é de normalidade, acrescenta o português, também é verdade que “já se nota que as pessoas começam a constituir reservas, na eventualidade de um agravamento da situação”. No caso dos espaços comerciais onde estão concentradas as grandes marcas ocidentais houve mesmo, em alguns casos, uma corrida aos bens de consumo que aí se vendem, antes que os seus preços disparassem ou que deixassem mesmo de estar disponíveis no mercado russo.
Anjelica diz que houve uma procura, sobretudo, “de material tecnológico”. A Apple e a Microsoft foram duas das empresas que anunciaram a suspensão das operações na Rússia, e as redes sociais estão cheias de imagens de filas intermináveis nas lojas Ikea do país, depois de o gigante sueco de mobiliário e decoração ter feito o mesmo. São apenas algumas das empresas que anunciaram o encerramento de lojas e de fornecimento de bens, a par com marcas como a Nike, a Volkswagen, a Airbnb (que também suspendeu a operação na Bielorrúsia), a Walt Disney ou grupos de moda, como a Mango. O grupo Inditex, dono da Zara ou da Bershka, juntou-se, este sábado, ao grupo das empresas que estão a abandonar a Rússia. E esta, pelo seu lado, bloqueou o acesso ao Facebook e restringiu o Twitter.
Com uma parte da população das grandes cidades munida de um elevado poder de compra, há produtos menos corriqueiros que também devem sofrer com a situação actual. O português contactado pelo PÚBLICO diz que é esperado que os produtos vegan comecem a escassear e que produtos de alimentação para animais, produzidos no estrangeiro, também já são de difícil acesso.
“Contudo, as marcas que têm unidades de produção na Rússia continuam a abastecer o mercado”, acrescenta. O aumento de preços e o receio do futuro é que pode contribuir, também, para que a sua venda diminua. “As pessoas continuam a fazer uma vida relativamente normal. Os restaurantes continuam a encher ao fim-de-semana. Contudo, algumas já começam a deixar o supérfluo de lado e a cortar, por exemplo, em actividades de lazer”, explica. Ginásios e concertos constam entre estas vítimas.
“Vergonha” de dizer que é russa
E, para lá da vida normal, a guerra está também a afectar – e muito – a parte emocional das pessoas, ao mesmo tempo que as restrições à liberdade aumentam. Anjelica diz que, desta vez, não participou nas manifestações pela paz, que ocorreram em alguns locais da Rússia, mas lembra que só em São Petersburgo “7000 pessoas” foram detidas, por o terem feito, e que a pena pode chegar “aos 20 anos de prisão”. Os media sem ligações ao Estado foram encerrados – ainda esta sexta-feira a BBC retirou os seus repórteres do país –, e, uma lei aprovada já esta semana permite a prisão de quem divulgar o que o Governo considerar ser informação falsa.
“É uma situação terrível, vai ser muito mau na Rússia. Eu ia dizer que é uma catástrofe, mas isso é o que está a acontecer na Ucrânia”, diz a mulher russa. Quase sem parar para tomar fôlego, acrescenta que, actualmente, tem “vergonha” de dizer que é russa e que o evita fazer. “Só quando tenho de mostrar o passaporte é que não posso evitar.” Diz que não gosta de se ver como uma “nódoa negra”, que é o que sente que a Rússia é neste momento aos olhos do mundo.
Não está sozinha, garante, mas também não está entre a maioria dos russos. “Entre os meus amigos e conhecidos, 50% são contra a guerra e a outra metade a favor”, reconhece. O centro de estatísticas russo Levada, considerado independente, vai um pouco mais longe e diz que, em Fevereiro, 71 % da população apoiava as acções do Presidente Vladimir Putin, embora não seja claro se esta percentagem já inclui a invasão da Ucrânia.
O português ouvido pelo PÚBLICO não tem dúvidas que “a sociedade civil está dividida”. Entre os que “reprovam veementemente” a intervenção militar na Ucrânia estão pessoas que, pela descrição do português, podem ser o papel químico de Anjelica. “Estão cientes das consequências que [a invasão e as sanções] acarretam. Muitos já as estão a sentir na pele”, explica. Não é só o poder de compra que diminui, é também, diz, “a responsabilidade moral das acções militares” que carregam, e o receio do “isolamento total”, associado ao “estigma da má fama da qual a partir daqui gozarão todos os cidadãos russos”.
Perceber os que apoiam a intervenção é, obrigatoriamente, perceber a complexa história da Rússia, que faz com que grande parte da população tenha “uma abordagem emocional” ao conflito, acredita o português. “A intervenção a que assistimos é por muitos vista como inevitável, justificada pela ameaça ocidental à segurança da Rússia e às populações russófonas que vivem na Ucrânia. Tenho no meu círculo de amigos pessoas que apoiam a acção militar e que empregam todo o zelo em tentar justificar o que está a acontecer”, afirma.
O grau de divisão entre a população russa e a abrangência total das consequências que se farão sentir no país são, neste momento, uma incerteza tão grande quanto o fim da guerra.