Quando a geografia nos separa e a arte nos une
Abel usou tintas e pincéis para levar a serra à cidade. Foi preciso haver primeiro um fogo imenso para a arte unir o que a geografia afastou.
Durante mais de um século, a cidade e a serra que aqui se retratam só comunicavam por um túnel. Os habitantes limitavam-se a enviar a lã e o leite através dele. “Ninguém ousava preencher o fosso que separava aqueles dois mundos. Nem sequer espreitar.”
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Durante mais de um século, a cidade e a serra que aqui se retratam só comunicavam por um túnel. Os habitantes limitavam-se a enviar a lã e o leite através dele. “Ninguém ousava preencher o fosso que separava aqueles dois mundos. Nem sequer espreitar.”
A bola de fogo que tudo cobriu de negro deu coragem a Abel, o protagonista, para se aventurar na cidade. Até então, “tosquiava, ordenhava, vivia e dormia no meio do rebanho”, tinha nascido para ser pastor: “Ainda assim, o que o deixava verdadeiramente feliz era… pintar.” Lavava os pincéis antes de lavar os dentes.
Depois do impacto da escala e do barulho, o rapaz conseguiu “aprender a cidade”. Adaptou-se, integrou-se e tornou-se pintor de “casas, grades, portões”. Às escondidas, desenhava a serra nas paredes onde fazia trabalhos, mas depois pintava por cima. “Até que um dia adormeceu com os pincéis na mão.”
Descoberto o seu talento e a sua saudade, pôde cobrir os edifícios com imagens da serra de onde partira. Ali tão perto. “Pouco a pouco, encheu as paredes da cidade de ovelhas, de cabras, de pássaros, de árvores, de pastores. De serra.” Pela arte, uniu o que a geografia separara.
No túnel, recuperou-se um ascensor a pedal que permite agora a viagem entre os habitantes daqueles dois mundos. “Os pássaros já voltaram a cantar e, pouco a pouco, a paisagem vai recuperando as suas cores.”
O olhar sobranceiro em relação ao interior
Conta-nos o autor do texto, João Ferreira Oliveira: “Sou muito sensível às questões da geografia, do território e às assimetrias — e aos preconceitos e ‘pré-conceitos’ — que lhe estão associadas. A palavra ‘serra’, por exemplo, está carregada de beleza e ar puro, mas não deixa de ter um certo peso quando comparada com a palavra ‘cidade’. Ou mesmo em relação às palavras ‘interior’ e ‘litoral’. Como se a cidade ou o litoral fossem a única via para se chegar longe. O único caminho.”
O também jornalista lembra, via email, como os últimos Censos provam que “as pessoas continuam a fugir para o litoral e para as cidades, tal como acontecia há 30, 40, 50 anos”. Diz ainda que “pouco mudou”. Assim como “não mudou uma certa atitude e olhar sobranceiros em relação ao interior, à serra. À província”.
Sabendo não haver “fórmulas milagrosas” para alterar esta realidade, acredita muito “no poder da arte para ajudar a encurtar distâncias”. E dá o exemplo da Covilhã, onde estudou há mais de 20 anos e que inspirou este livro. A cidade “tem dezenas de murais no centro histórico que remetem para o ambiente da serra. Para as tradições e costumes locais”.
Também fala de Bragança. “Em vários concelhos de Trás-os-Montes, foram feitas inúmeras intervenções nas aldeias, por exemplo. Ou em pleno Parque Natural de Montesinho. Pegaram nas tradições e costumes e tatuaram-nas na paisagem, transformando-a numa nova marca identitária, e isso teve um efeito directo na população.”
Durante o seu projecto recente Viagem ao Interior (divulgado no PÚBLICO, Fugas) — em que percorreu várias regiões do país a ler histórias e a oferecer livros —, alguns alunos diziam-lhe que queriam ser artistas, ilustradores, pintores. “A mesma geografia e a mesma paisagem que tantas vezes limitou as ambições dos mais novos ajudam agora a desenhar os seus sonhos”, diz, esperançoso.
Confessa também ele ter um sonho: “Que uma destas ilustrações acabe nas paredes de uma cidade. Era como se o livro e a história ganhassem vida!”
Depois da escolha inicial deste título, A Cidade e a Serra, pensou em mudá-lo, “para evitar colagens ao livro A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós”. Mas a tal viagem pelo interior ocupou-o e distraiu-o, já não foi a tempo de o alterar. “Seria O Pintor, porventura, mas não seria tão bom. Foi melhor assim, mesmo correndo o risco da tal colagem. Estou disposto a pagar o preço”, afirma com honestidade.
Boa emoção, bom resultado
A ilustradora, Margarida Esteves, em resposta ao nosso contacto, avança logo com a frase: “Foi um dos meus projectos favoritos até agora.” A provar a ideia de que, quando há uma boa emoção, há um bom resultado.
A artista, a viver em Londres, diz ainda: “Gostei bastante da história que o João escreveu, logo desde o início. Qualquer história em que o protagonista gosta de desenhar, eu costumo gostar!”
Conta-nos também as escolhas e o processo: “Foi importante fazer uma distinção entre o campo e a cidade, e decidi fazê-lo através da cor — tudo bastante verde e azul quando relacionado com o campo, cinzentos e castanhos para a cidade.”
E tem uma parte favorita da narrativa: “Quando as pessoas da aldeia observam o fogo e o Abel finalmente decide descer o túnel que liga a cidade.” Estamos com ela.
Sobre a técnica, descreve: “Começo sempre por pequenos e rápidos apontamentos/esboços a lápis com ideias de como construir a página. A partir daí, o meu processo torna-se bastante digital. Tanto esboços como finais são geralmente desenhados digitalmente.” E que bem que resultam. Há por aí algum muro que queira espelhar as cores da serra?