Na terra de Bandera, todos os cuidados são poucos

Perto dos Cárpatos fica Stryi, uma pequena cidade onde cresceu Stepan Bandera, ícone do nacionalismo ucraniano e fonte das acusações de nazismo feitas pela Rússia.

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Stepan Bandera é um ícone do nacionalismo ucraniano ADRIANO MIRANDA

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Não é preciso conduzir muito tempo para fora dos limites de Lviv para perceber alguns dos pequenos incómodos da guerra, menos graves e espectaculares que os bombardeamentos ou o avanço de tanques. Num dos acessos à cidade, está um enorme engarrafamento para entrar no perímetro urbano causado pelo bloqueio parcial de uma auto-estrada. Um preço pequeno a pagar por uma garantia de segurança, dirão os ucranianos.

Dirigimo-nos a sul na direcção dos Cárpatos e o frio matinal acentua-se. Em Stryi, uma cidade de 60 mil habitantes no sopé da montanha, a atmosfera é de maior apreensão quando comparada com a aparente tranquilidade de Lviv. Várias lojas e cafés estão fechados, os semblantes estão mais carregados, e tanto a polícia como as brigadas das Forças de Defesa Territorial locais mostram grande desconfiança ao verem jornalistas estrangeiros.

Natalia tem pouco a dizer para além da “dor no coração” que diz sentir sempre que liga a televisão. Porém, não foge à regra do optimismo que parece unir todos os ucranianos. “Sempre acreditei no nosso Exército, mas precisamos de ajuda da Europa”, afirma. A bancária admite ter medo durante a noite, mas rejeita pensar em sair da região. “Se todos sairmos, quem é que fica?”, questiona.

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Oleg Kanivets, presidente da câmara de Stryi ADRIANO MIRANDA

Stryi, nome que vem do rio que banha a cidade e que significa “corrente rápida”, é um importante nó ferroviário com ligações à Hungria e à Roménia. Na região existem também projectos de prospecção de gás e um antigo aeroporto militar que, apesar de desactivado, tem ainda uma pista que pode ser usada para aterragens hostis. “Podemos dizer que temos um nível de ameaça elevado”, diz o presidente da câmara, Oleg Kanivets cargo que, ao abrigo da lei marcial, foi trocado desde há uma semana pelo de presidente do Conselho de Defesa local.

A cidade, e a região em seu redor, são patrulhadas por uma brigada das Forças de Defesa Territorial e ainda por dois outros grupos de voluntários “que estão autorizados a usar armas”, especifica o responsável. Ao todo, há perto de mil efectivos, quase todos habitantes de Stryi, a defender as suas ruas e infra-estruturas principais.

Os dirigentes locais mostram confiança no aparato montado, mas há sinais de alarme. Circulam notícias de que nos dias anteriores foram detidas duas pessoas que estavam a colocar marcas na zona do antigo aeroporto militar. Foram denunciadas por um grupo de civis.

O município criou uma linha telefónica de apoio que funciona 24 horas para os ucranianos que passam por Stryi em fuga de regiões afectadas pelos combates, à procura de passagem para a Polónia ou Hungria, através da qual podem saber onde podem passar uma ou mais noites. Segundo as estimativas de Kanivets, saíram cerca de dois mil habitantes da cidade desde o início da invasão russa, enquanto outros 600 chegaram de outras províncias, sobretudo do Leste.

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Uma semana depois do início da guerra, Stryi está tranquila, apesar da tensão no ar. Se o pior cenário se confirmar, Kanivets diz-se preparado para combater. “Tenho licença de porte de arma”, garante. “A terra irá queimar por baixo dos pés dos soldados russos”, declara.

Herói ou nazi?

Não é possível viajar muito tempo na Ucrânia sem que a História nos interpele. Stryi é também a cidade onde Stepan Bandera passou grande parte da sua juventude e onde começou a desenvolver as suas ideias políticas. Ícone maior do nacionalismo ucraniano, Bandera é uma das personagens mais controversas da turbulenta História do século XX na Europa de Leste. Herói e defensor da língua e identidade nacional para os ucranianos; colaboracionista nazi que hoje inspira a russofobia para os russos; responsável por massacres contra judeus e polacos.

Bandera foi um dos líderes da Organização dos Nacionalistas Ucranianos (ONU), um partido de inspiração fascista que durante o período entre as duas guerras mundiais defendia a independência da Ucrânia, na altura parcialmente integrada na Polónia, e do Exército Insurgente Ucraniano (EIU), que durante a II Guerra Mundial chegou a ter apoio da Alemanha nazi contra a União Soviética, acabando depois por combater os nazis. Pelo meio, a organização paramilitar levou a cabo massacres da população polaca, que a historiografia polaca considera um genocídio.

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Hoje, mais do que nunca, Bandera é objecto de um intenso culto de personalidade, sobretudo na região mais ocidental da Ucrânia, onde o sentimento nacionalista é forte. O vermelho e o negro da bandeira do EIU convivem ao lado do amarelo e azul da bandeira ucraniana nas varandas de Stryi, onde persiste um forte orgulho no filho da terra.

Nas redes sociais, são frequentes os vídeos de soldados e voluntários na linha da frente dos combates a entoar cânticos patrióticos que são, na verdade, canções dos tempos da insurgência nacionalista. Um dos objectivos declarados da Rússia no conflito é a “desnazificação” da Ucrânia e a adoração da Bandera é um dos argumentos usados por Moscovo.

“A Ucrânia é muito pacífica”, garante Kanivets, que desvaloriza as acusações de genocídio e extremismo violento atribuídas a Bandera. “Cada nação tem os seus heróis, Bandera protegeu o seu país”, explica.

A casa onde a família Bandera viveu em Stryi passa quase despercebida numa rua de grande movimento à entrada da cidade. Stepan morou aqui entre os dez e os 20 anos, enquanto o pai, que era padre da Igreja Ortodoxa, esteve colocado na povoação. “Bandera cresceu numa família religiosa da elite intelectual local”, explica-nos o director do museu local, Mykola Zakusov. Numa das salas, a um canto, está o bandolim que o jovem Stepan tocava e o tabuleiro onde jogava xadrez. Numa parede está afixado um boletim escolar. Religião: Muito bom; Língua polaca: Suficiente.

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Na visita à pequena casa dos finais do século XVIII, os detalhes mais sombrios da biografia de Stepan Bandera são deixados de lado. “Foi uma grande figura da história ucraniana. É o orgulho da nossa cidade”, diz simplesmente Zakusov. No Natal, apesar de aqui ninguém viver, grupos vêm entoar cânticos da época. Os descendentes vivos de Bandera, que moram actualmente na Alemanha, onde morreu em 1959 assassinado por um agente soviético, costumam visitar a casa, explica o director.

Volta-se a embater na História nas traseiras do edifício da Câmara Municipal, onde existiu uma prisão construída no século XIX e que serviu para deter ucranianos durante todo o período das várias ocupações: Império Austro-Húngaro, Polónia e União Soviética. Também aqui existe hoje um museu e um memorial em “honra das vítimas dos regimes imperiais”.

Em 1939, foram executados dezenas de presos pelas autoridades soviéticas por falta de espaço na prisão. A descoberta das suas ossadas, já depois da independência da Ucrânia em 1991, motivou a criação do memorial. Por aqui, diz Zakusov, passaram “presos políticos socialistas, nacionalistas, padres e membros do movimento radical ucraniano”.

O director tem planos para expandir o museu para que passe a incluir a historiografia da guerra contra os rebeldes do Donbass e a actual, contra a Rússia. A partir daí estará criado o Museu da Luta Ucraniana e Zasukov não tem dúvidas de que o próximo 24 de Fevereiro será um dia de homenagem. De preferência depois de uma guerra triunfal.