“O valor da Turquia para a UE e para a NATO acabou de subir”

A invasão da Ucrânia assinala o fim do pós-Guerra Fria. “Vamos olhar para trás, para este período pós-1989 e perceber que houve erros fundamentais”, diz o analista Vali Nasr.

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Mesmo com Putin, americanos e europeus acreditaram que a Rússia "seria cada vez mais democrática, mais europeia, mais ocidental" Reuters

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Professor de Estudos do Médio Oriente e Política Internacional na Universidade John Hopkins, Vali Nasr já passou por diferentes think tanks e aconselhou estrategas políticos norte-americanos e líderes mundiais. Autor de inúmeras obras sobre Médio Oriente e política externa norte-americana, falou com o PÚBLICO por videochamada depois de uma aula aberta no ciclo de seminários Intersecting Philosophy, Politics and Economics, que reúne estudantes da nova licenciatura de Filosofia, Política e Economia e da licenciatura em Comunicação Social da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica.

Com os últimos três presidentes, os Estados Unidos têm alterado o seu foco, afastando-se do Médio Oriente e concentrando-se na Ásia. Neste processo, escaparam riscos que podiam ter sido antecipados em relação à Rússia de Vladimir Putin?
Em retrospectiva, os 20 anos que os Estados Unidos passaram centrados no Médio Oriente e na ‘guerra ao terrorismo’ foram um erro estratégico. Washington decidiu moldar a sua estratégia global em função do combate a uma ideia que, afinal, não era a ameaça estratégica que se considerou ser. A consequência é que não levaram a ideia da política de grandes potências a sério. E o primeiro grande poder que escapou à atenção foi a China. Depois, houve uma série de suposições em que se enganaram. Tanto nos EUA como na Europa, a geração de intelectuais pós-1989 ficou presa ao ‘fim da História’, à ideia de que a democracia avançaria. É uma leitura da história da Europa que aponta para que todos os países do mundo vão seguir o Ocidente como modelo, que o crescimento económico conduz à democratização.

Isso aconteceria com a Rússia?
A crença era que a Rússia se iria tornar cada vez mais democrática, mais europeia, mais ocidental. Com a China a ideia era que com o crescimento económico viria a modernização, uma classe média e depois uma política para a classe média.

Mesmo assim, como é que não se viram alguns sinais?
É verdade que os sinais estavam lá, Putin envolveu-se na Geórgia, na Síria, mas, de alguma forma, gerou-se a ideia de que nunca entraria na Ucrânia. O custo seria demasiado alto e bastaria a integração económica no Ocidente para o controlar

Por estes dias, as lideranças políticas estão a ser capazes de lidar com o que está a acontecer (sob pressão das suas próprias opiniões públicas) e, ao mesmo tempo, antecipar as consequências das suas decisões a médio e longo prazo?
Sim. Os europeus não poderiam ter agido de outra forma. Mas a gestão das consequências das acções da Rússia, não na Ucrânia, mas na Europa, no mundo, é outro tema. A Europa passou a ter o conflito nas suas fronteiras. Qual vai passar a ser o peso do investimento militar nos orçamentos dos países europeus, as suas contribuições para a NATO? O equilíbrio de poderes dentro da União Europeia vai mudar, a Polónia e a Hungria vão ser mais importantes, estão na linha da frente em termos de posições militares. É um continente que deixou de gastar muito em defesa, depende energeticamente da Rússia e tem a sua economia muito mais interligada com a da Rússia do que os EUA.

Para já, as posições dos EUA e da Europa têm sido completamente coordenadas.
Mas vai-se colocar outra questão, que é saber se os EUA conseguem pressionar a Europa a lidar com tudo aquilo que percepcionam como ameaças ao mesmo tempo: a Rússia, a China e o Irão. É provável que os europeus digam que são demasiadas frentes, que precisam do petróleo iraniano ou de procurar formas de afastar a China da Rússia, que não podem boicotar a China e o comércio com a China.

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Vali Nasr é professor de Estudos do Médio Oriente e Política Internacional na Universidade John Hopkins

Em relação ao objectivo de Putin de fortalecer a influência russa em várias esferas, na vizinhança, no Médio Oriente, como é que a Ucrânia vai influenciar essa presença?
É provável que Putin precise das tropas e do esforço que tem na Síria e na Líbia na Ucrânia ou noutro lugar. Há a sensação, nos países do Médio Oriente, que depois do afastamento dos EUA vai dar-se a saída da Rússia e o recuo da Europa. Putin leva a ideia de uma Rússia “near abroad” [expressão que começou por designar as repúblicas independentes em redor da Rússia depois da dissolução da União Soviética] muito a sério, mas assim que entrou na Ucrânia tudo passará a ser ditado pelo que acontece ali. Por um lado, porque a sua capacidade militar é finita, por outro, porque o nível de resistência que encontrar vai influenciar os seus passos seguintes, como um jogo de xadrez. Se a Ucrânia for muito difícil pode desistir da Moldova e dos Bálticos e considerar que a prioridade é o Sul, o Cáucaso. Ou pode começar a preocupar-se com a possibilidade de os EUA e a Europa armarem o Azerbaijão e a Geórgia e pode decidir avançar com acções preventivas nestes países. Mesmo que Putin saísse amanhã da Ucrânia o que se quebrou entre a Europa e a Rússia não tem remédio. Agora, sabemos que é a Rússia é uma ameaça.

Enquanto Putin estiver no poder.
Não há uma alternativa democrática na Rússia a não ser que houvesse um colapso do regime, como em 1989. Um líder nacionalista substituído por outro nacionalista não garante mudanças na ideia das prerrogativas imperialistas russas.

Em relação à Turquia, que acabou por limitar o acesso dos navios russos às passagens que unem o Mediterrâneo ao mar Negro, como é que esta crise vai mudar o seu posicionamento? E como é que Recep Tayyip Erdogan se vai comportar, tendo em conta que quer ser reeleito para o ano.
A Turquia tem as suas próprias preocupações estratégicas. Se a Rússia controlar a parte norte do mar Negro vai passar a ser mais agressiva no Cáucaso, pelo que Moscovo teria algumas garantias a oferecer em troca da neutralidade. Mas a Turquia é um membro da NATO e a Rússia não está em posição de poder ajudar a Turquia economicamente – e essa é grande preocupação de Erdogan para ser reeleito. O valor da Turquia para a UE e para a NATO acabou de subir. A UE não tem o seu próprio Exército, o seu Exército colectivo é a NATO e a Turquia integra-o. Não me parece que agora Erdogan esteja interessado na adesão, mas quer ser levado mais a sério e quer ser apoiado economicamente.