Legião estrangeira: “Se os ucranianos estão dispostos a lutar, nós também podemos”
Kiev diz que “os primeiros 16 mil” combatentes estrangeiros “estão a caminho”. Ao apelo às armas respondem jovens e menos jovens da Tailândia aos EUA. Alguns dizem-se “comovidos” com a resistência ucraniana. Outros são membros de milícias de extrema-direita em busca de treino e contactos.
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A presença de combatentes estrangeiros na Ucrânia não é uma novidade. Em 2014, centenas acorreram ao Leste do país para lutar ao lado dos rebeldes pró-russos ou para integrar os batalhões de voluntários que obedeciam às autoridades ucranianas. Escrevia então o site da BBC Mundo que os separatistas pró-Rússia gostavam de “exaltar a figura dos seus combatentes estrangeiros, apresentando-os como Brigadas Internacionais modernas que enfrentam o ‘fascismo’”, ao mesmo tempo que em Kiev se debatia a “conveniência” de criar uma “Legião Estrangeira” ucraniana.
Com o início da invasão russa do país, a 24 de Fevereiro, o Presidente ucraniano, Volodimir Zelensky, chamou quem quisesse juntar-se à defesa “da Ucrânia, da Europa e do mundo”, enquanto o seu ministro dos Negócios Estrangeiros pedia a formação de uma “legião estrangeira”. Esta quinta-feira, Zelensky afirmou que “a Ucrânia já está a receber voluntários estrangeiros”, dizendo que “os primeiros 16 mil estão a caminho para proteger a liberdade e a vida”.
Ainda não são muitos os relatos públicos sobre as motivações dos que agora acorrem à Ucrânia. Quem chegava ao Leste da Ucrânia há oito anos fazia-o pelas mais diferentes razões.
Dois franceses que estavam em Donetsk a lutar com os rebeldes contaram ao jornal Le Monde que faziam parte de um movimento ultranacionalista, Unidade Continental, que organizara manifestações em França e na Sérvia em apoio ao ditador sírio, Bashar al-Assad, e que consideravam a Rússia de Vladimir Putin o último bastião contra a globalização liberal, que viam como “responsável pela decadência dos valores nacionais e pela perda da soberania francesa”. Para o espanhol Ángel Davilla-Rivas, ouvido pela agência Reuters, a questão era o reconhecimento do apoio da União Soviética aos republicanos na Guerra Civil Espanhola. Já o franco-atirador sueco Mikael Slillt explicou à BBC que lutava do lado do Governo ucraniano por acreditar na “sobrevivência dos brancos” (planeava em seguida unir-se às forças de Assad para fazer frente ao “sionismo internacional”).
Umas semanas antes do início da ofensiva, já a Legião Nacional Georgiana, uma unidade paramilitar organizada em 2014 para “enfrentar a agressão da Rússia” no Donbass, começava “um novo processo de recrutamento de soldados estrangeiros”. “Neste momento, há muitas pessoas que se inscrevem. Com mais de 300 candidatos, a Geórgia está uma vez mais em primeiro. Em segundo surgem os norte-americanos, depois os britânicos, os australianos, os italianos e os alemães”, dizia à Euronews um dos recrutadores do grupo.
A actual chamada às armas está a tocar pessoas um pouco por todo o mundo, incluindo combatentes de outras guerras, mas também gente que nunca se imaginou num cenário de conflito.
Na Tailândia, onde a embaixada ucraniana publicou um apelo, a Reuters encontrou vários jovens que participaram nos grandes protestos pró-democracia de 2020 dispostos a viajar para a Ucrânia. “Eles também estão a lutar pela democracia e agora foram invadidos por uma superpotência e por um tirano, interrogo-me o que posso fazer por eles”, disse Chanaphong Phongpai, de 28 anos, que a agência encontrou esta quinta-feira junto à embaixada ucraniana.
Há uma semana, Suheil Hammoud, um rebelde sírio conhecido por Abu Tow e famoso por ter destruído dezenas de tanques de Assad, perguntava no Twitter como é que podia ir combater a Rússia. Não é o único sírio interessado, tendo em conta o apoio que Bashar recebeu e recebe de Putin.
"Carne para canhão"
David Malet, professor na Universidade Americana e autor de dois livros sobre combatentes estrangeiros, nota que “normalmente as coisas não correm bem à maioria dos voluntários”. “Os que têm capacidades de combate são tratados muito bem pelos comandantes locais, o resto são usados como carne para canhão”, escreve no Twitter. Malet explica que há sempre conflitos entre os locais e os estrangeiros, que costumam ser vistos como “fanáticos”.
Vários relatos dão conta da existência de muitos britânicos a caminho da Ucrânia. “Passei a maior parte da minha vida a divertir-me, se morrer amanhã tive uma boa vida”, disse ao jornal Guardian um homem de 57 anos que afirmou chamar-se Konch e que planeava fazer a viagem com outros voluntários esta semana. Konch trabalha para uma empresa de segurança: “Muitos dos outros tipos que vão comigo são ex-militares, mas alguns nunca dispararam uma bisnaga na vida. Qualquer pessoa com meio metro de integridade não pode deixar de se sentir comovida com o que está a acontecer. Se os ucranianos estão dispostos a lutar, nós também podemos.”
No início da semana, a ministra dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido, Liz Truss, foi criticada por ter dito que apoiava os que “queiram ir apoiar essa luta”. “As pessoas podem tomar as suas próprias decisões. Os ucranianos estão a lutar pela liberdade e pela democracia, não apenas pela Ucrânia, mas por toda a Europa”, afirmou Truss, obrigando outros membros do seu Governo a lembrar que Londres desaconselha quaisquer viagens para a Ucrânia.
Num tom comparável ao de Truss, a primeira-ministra dinamarquesa, Mette Frederiksen, anunciou que a Dinamarca deixará partir os voluntários que queiram sair do país e juntar-se às brigadas internacionais. “É uma escolha que cada um pode fazer. Isso é válido tanto para os ucranianos que vivem aqui como para todos os outros que pensem que podem contribuir directamente para o conflito”, disse Frederiksen, numa conferência de imprensa. “A nossa análise é que à primeira vista não há nenhum obstáculo jurídico.”
Mercenários sem direitos
As declarações de Truss e de Frederiksen terão valido ao Reino Unido e à Dinamarca um lugar na lista de países que o Ministério da Defesa russo diz terem “permitido legislativamente” aos seus cidadãos participar nas “acções bélicas” na Ucrânia, ao lado da Letónia, Polónia e Croácia. Ao mesmo tempo, Moscovo alega que o comando da Legião Estrangeira francesa prevê enviar militares de origem ucraniana para o conflito – pelo contrário, algumas notícias dão conta de um grupo de ucranianos da Legião Estrangeira interceptados pelas autoridades quando planeavam sair de França e seguir para a Ucrânia, o que não significa que outros não tenham conseguido fazê-lo.
Mas o aviso do Kremlin é claro. “Quero sublinhar de forma oficial: todos os mercenários enviados pelo Ocidente para ajudar o regime nacionalista de Kiev não são combatentes segundo as leis humanitárias internacionais. Não têm direito ao estatuto de prisioneiros de guerra”, disse o major-general Igor Konashenkov, porta-voz do Ministério da Defesa.
Independentemente da narrativa russa, que apresenta esta invasão como tendo por objectivo “desnazificar” o país vizinho e defender aqueles que na sua visão são ali vítimas de “genocídio”, a verdade é que a caminho da Ucrânia irão com grande probabilidade membros de milícias de extrema-direita de vários países europeus. Mesmo antes do início da ofensiva, líderes de milícias em França, na Finlândia ou na própria Ucrânia publicaram declarações onde apelavam aos seus seguidores para se juntar ao combate ucraniano contra a Rússia, em textos localizados e traduzidos pelo SITE Intelligence Group, uma empresa privada que supervisiona movimentos extremistas.
"Supremacistas brancos"
“A instabilidade na Ucrânia oferece aos supremacistas brancos as mesmas oportunidades que a instabilidade no Afeganistão no Iraque e na Síria ofereceu durante anos aos militantes jihadistas”, disse ao New York Times Ali Soufan, que dirige o Soufan Group, que estuda fenómenos de radicalização e extremismo e documenta há anos a forma como o conflito no Leste da Ucrânia se afirmou como centro internacional do supremacismo branco.
Soufan ressalta que alguns destes voluntários são movidos por “razões humanitárias”, mas acabam por “exacerbar o conflito e a violência”. Referindo-se a todos os combatentes estrangeiros, não apenas aos de extrema-direita, David Malet escreve que “alguns permanecem leais à causa por décadas, mas muitos regressam extremamente desiludidos”, enquanto “uma percentagem mínima se torna terrorista doméstico ou combatente estrangeiro noutro local”.
“Os que partem para a Ucrânia podem ter pouco em comum com os jihadistas do ponto de vista ideológico, mas a presença de radicais de extrema-direita deve fazer pensar os governos que considerem encorajar os seus cidadãos”, escreve Daniel Byman, analista do think tank Brookings Institution, no blogue Lawfare. “Ver estes extremistas, que já representam uma ameaça grave, tornarem-se mais letais e ganharem contactos é um risco. Também podem infectar outros com as suas crenças. No regresso a casa, a experiência de combate pode levar a que sejam especialmente admirados nas suas comunidades”.