Comer muito menos carne é a opção mais realista
Há modelos matemáticos que dizem que sim, mas esta mudança de hábitos global seria pouco realista do ponto de vista sociocultural. Uma coisa é certa: comer menos carne é bom para o ambiente – e para a nossa saúde também.
À luz da ciência, não há qualquer dúvida de que o planeta “agradeceria”, se toda humanidade reduzisse consideravelmente o consumo de carne. Mas e se fôssemos mais longe, e convencêssemos a população mundial a abdicar de todos produtos de origem animal? Marco Springmann, investigador do programa O Futuro da Comida da Universidade de Oxford, construiu modelos informáticos capazes de simular esta hipótese. E chegou à conclusão de que a redução de emissões associadas à produção de alimentos em países ricos poderia ir até os 84%. “É uma redução brutal. A ciência aqui é cristalina: se quisermos proteger o planeta e a nossa saúde ao máximo, o caminho a seguir é a dieta vegan”, afirma Springmann ao PÚBLICO.
O cientista reconhece, contudo, que esta mudança global é difícil. E, por isso mesmo, cenários mais flexíveis também foram simulados com ferramentas informáticas. “Se passarmos todos a comer carne vermelha apenas uma vez por semana, os ganhos ambientais também são muito significativos”, acrescenta. O próprio cientista, que se considerava “um devorador de carne”, tornou-se vegan após começar a investigar as relações entre alimentação, saúde pública e ambiente. “Sou vegan há quase 15 anos e foi uma decisão unicamente baseada em evidência científica”, afirma.
A socióloga Luísa Schmidt vê este cenário especulativo como algo um pouco “radical” e que envolveria uma mudança “demasiado brusca”. “A ideia de passarmos todos a ser vegetarianos tem a cara de um enorme disparate, porque nem a produção vegetal tem condições de suprir as necessidades alimentares da população, nem a cessação brusca da produção de carne para a alimentação seria suportável para a sobrevivência de muitas populações que vivem desse trabalho”, observa a investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, especializada em sociologia do ambiente.
Salvar terras agrícolas
Springmann sustenta que o seu modelo indica que, ao contrário do que se pode supor, teríamos condições de produzir vegetais para alimentar a humanidade. “Analisámos com cuidado esta questão e descobrimos que 10% a 20% das terras agrícolas seriam salvas, se o mundo inteiro se tornasse vegano”, afirma. Isto, porque, de acordo com as simulações feitas na Universidade de Oxford, muitas terras agrícolas estão vocacionadas para alimentar o gado e esta exigência do sector agro-pecuário deixaria de existir.
Além disso, todos os pastos ficariam “livres”. Dois terços de todas as terras agrícolas são pastagens e estas poderiam ser reflorestadas ou destinadas ao cultivo bioenergético. “Se juntarmos tudo, obteríamos uma área do tamanho da África. É realmente enorme”, garante o cientista.
Schmidt concorda que “o futuro será cada vez mais vegetal”. É uma transição alimentar que precisa de ser feita, argumenta, mas que não tem necessariamente de excluir a carne por completo. “Quanto mais depressa os sistemas abandonarem a produção intensiva de carne, substituindo-a por sistemas e produtos mais compatíveis com a saúde humana, o planeta e a ética, melhor será para todos. Não basta a uma alimentação saudável e justa que ela seja vegetal, é importante que ela seja também diversa. Nós temos em Portugal bons exemplos de produção sustentável de carne, como o porco preto e a carne mirandesa, podemos apostar numa dieta mediterrânica com pouca carne e muitos vegetais”, afirma a socióloga.
Visão semelhante tem Joana Portugal Pereira, autora e dirigente do 6.º Ciclo de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). “Acho que estamos a entrar aqui em muitos extremos. Comermos níveis elevados de carne, acima daquilo que recomenda a Organização Mundial da Saúde, não é de todo desejável. Mas tornarmo-nos todos vegetarianos também não é algo que faça muito sentido. Primeiro, porque não é socioculturalmente plausível, cada um tem o seu perfil. Do ponto de vista ambiental, também não me parece que faça sentido adoptarmos todos o mesmo padrão”, afirma Portugal Pereira, que é também professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro, no Brasil, e investigadora visitante do Imperial College de Londres, no Reino Unido.
Adoptar um padrão saudável
Schmidt e Portugal Pereira defendem que se deve antes repensar o nosso comportamento, adoptando padrões mais saudáveis sem sermos obrigados a abraçar uma dieta específica. “Temos de equacionar uma série de questões e, por isso, a minha resposta seria sempre: ‘Depende.’ Até porque estamos aqui a falar de uma forma genérica, existem vários tipos de produção de alimentos. Estamos a falar de gado bovino extensivo ou intensivo? Com expansão da agricultura em floresta nativa, provocando o desflorestamento, ou não? A agricultura é extensiva ou intensiva? Estamos a falar de produtos com novas tecnologias, como a produção de carne sintética? Ou vamos substituir a proteína bovina por insectos, como já está a acontecer em alguns mercados emergentes? Estamos a pensar em agricultura tradicional ou uma produção em quintas verticais, sem necessidade do solo? Todos estes factores têm um peso”, questiona a cientista do Imperial College.
A transparência sobre a origem do produto, assim como a forma como foi produzido, é também considerada um ponto importante para que o consumidor possa tomar decisões informadas. Para isso, os investigadores contactados pelo PÚBLICO sublinharam a importância de uma rotulagem mais clara e completa. “Chegamos à conclusão no IPCC que o consumo de alimentos corresponde a quase um terço das emissões totais – aproximadamente, 18 mil milhões toneladas de CO2 equivalente ao ano, mais coisa menos coisa, os inventários ainda têm de ser fechados. E avaliamos também as medidas que podemos implementar tanto do lado da produção como do consumo. O potencial técnico que foi avaliado nos nossos modelos para 2050 sugere que temos um potencial de redução de emissões de aproximadamente 8 mil milhões de toneladas. Isto coloca um grande ónus nos padrões de consumo que adoptamos”, explica Portugal Pereira. Por outras palavras, o problema tem de deixar de ser unicamente associado ao produtor, uma vez que o consumidor também tem um papel importante na hora de escolher o que entra no prato de comida.
Os três investigadores convergem ainda num outro ponto: quando comunicamos a importância de mudanças na dieta, é estratégico sublinhar o efeito “dois em um” da redução do consumo de carne, ou seja, frisar que é simultaneamente bom para a saúde humana e para o planeta. “As pessoas estão cada vez mais atentas aos temas ligados à saúde. Temos de usar os centros de saúde como intermediários na transmissão de informação ligada à alimentação saudável, porque estes são os lugares onde as pessoas com menos literacia se informam. Assim, não aumentamos a iniquidade social ao nível da nutrição”, conclui Luísa Schmidt.