Invasão da Ucrânia resulta de um “projecto político meticulosamente elaborado”
Para Sónia Sénica, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais, o Presidente Volodimir Zelensky tornou-se o “símbolo da coragem ucraniana”.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Apesar de ter apanhado todos de surpresa, o que está a acontecer agora na Ucrânia tem na base “um projecto político que tem sido meticulosamente planeado há muitos anos” por Vladimir Putin, afirma a investigadora integrada do Instituto Português de Relações Internacionais Sónia Sénica, que tem como área de trabalho a Federação Russa, política externa russa e espaço pós-soviético. A especialista aponta para um plano com um argumentário fundamentado no ethos russos, na consolidação do espaço pós-soviético e na ameaça externa.
No primeiro dia da invasão, uma cidadã ucraniana residente em Portugal mostrava-se estupefacta por os soldados russos terem entrado na Ucrânia. Porque eles “são nossos irmãos”, dizia. É o que a História mostra?
O que liga estes povos tem a ver precisamente com as questões históricas. Como sabemos, o principado de Kiev, que vem dos primórdios [séculos IX ao XIII], deu lugar depois às civilizações eslavas que conhecemos agora. Continuaram depois no Império Russo e no Império Soviético e contempla a actualidade do que consideramos ser a Federação Russa e também a Ucrânia.
Não há dúvida de que há aqui uma questão histórica que os liga, e também identitária. A este respeito chamaria a atenção em particular para um artigo que o Presidente Vladimir Putin escreveu recentemente. Vou usar os termos que ele utiliza. E o que ele diz é que a Bielorrússia, a Rússia e a Ucrânia fazem parte de uma identidade comum, que são precisamente países irmãos.
Fica muito claro que as motivações dele, em relação ao caso particular da Ucrânia, se baseiam precisamente no pressuposto de que os ambos os países estão interligados, têm uma raiz identitária comum e, portanto, devem agir conjuntamente. Porque acima da integridade territorial, soberania, existem valores identitários que se sobrepõem à questão nacional. Afirma mesmo que a soberania da Ucrânia só poderia ser viável na medida em que esteja numa concertação com a Rússia. E, portanto, naquele momento já existia o prenúncio do que poderia vir a ocorrer nesta fase.
Os próprios ucranianos assumem um denominador comum identitário, sem que tal comprometa a sua defesa como um país independente e soberano. Partilham a cultura eslava, a própria religião ortodoxa. Há famílias que estão divididas entre os dois países. O que se está a passar não é uma guerra entre o povo ucraniano e o povo russo, mas sim uma pretensão belicista da liderança russa. Faz toda a diferença.
Nesta invasão, existe da parte da Rússia uma tentativa de proteger esse espaço que considera comum, mas também uma forma de se proteger, ao não querer que o Ocidente vá até às suas fronteiras?
São várias questões numa só. Da minha perspectiva, aquilo que parece emergir é que a Rússia tem uma especificidade muito particular. Em termos de país, de regime político. Não só porque tem transitado cada vez mais para um regime com uma liderança cada vez mais forte e uma sociedade cada vez mais confrangida no que respeita às liberdades, aos direitos e garantias individuais à luz do que nós conhecemos nas nossas sociedades ocidentais.
Em simultâneo, Putin continua a desenvolver um caminho de grande assertividade em termos de política externa. E nesta relação entre as duas políticas, as acções externas, geralmente apresentadas como sendo contra um outro, são muitas vezes legitimadas pela sociedade civil russa. Ao longo dos anos, o Presidente Putin tem conseguido manter um índice de popularidade bastante elevado.
No início desta crise ucraniana, notou-se claramente o intuito de Putin justificar o que dizia ser uma “operação militar especial” com a defesa da população russófona na zona do Donbass, e apoiar as repúblicas separatistas por via do seu reconhecimento da independência.
São sempre acções fundamentadas também por um argumentário que remete primeiro para o ethos russo, para a questão identitária. Depois para a defesa dos russos que, por via da implosão da União Soviética, ficaram em territórios que não pertencem à Federação Russa actual, que é a herdeira natural da URSS.
A outra questão sempre permanente é a da ameaça externa. A Rússia ter de se defender, de se legitimar, de se robustecer internamente para poder fazer face ao que considera ser uma permanente ameaça externa, nomeadamente da parte da NATO.
No meu entendimento, tudo isto configura um projecto político que tem sido meticulosamente planeado há muitos anos e que já se percepcionava que tendia para um agravamento da tensão com o Ocidente e a um afastamento gradual, desde a anexação da Crimeia em 2014.
Mas a escalada destes últimos dias não era expectável. E já há quem aponte para um possível desequilíbrio de ordem psiquiátrica da parte de Putin...
Não queria comentar esse tipo de teorias. Agora há todo o tipo de teorias para tentar justificar uma acção que nos apanhou a todos de surpresa. Mas que levou a uma coesão e unidade sem precedentes por parte do Ocidente; a uma clara relevância dada à Aliança Atlântica, que, de ponto de vista de alguns responsáveis políticos, como, por exemplo, Macron, estaria em período de morte cerebral; e a uma desestabilização que fez com que o foco mundial se centre nos desenvolvimentos da crise ucraniana, com todos os países a tentarem posicionar-se neste xadrez internacional. Isto é muito significativo.
Esta crise motivou os principais actores europeus a redefinir os seus conceitos estruturantes de política externa, com uma mudança história da posição alemã em relação ao fornecimento de armas a países em conflito.
Concordo em pleno que estamos perante um momento decisivo de alteração clara daquilo que era a ordem internacional como a conhecíamos. Tornou-se claro que o objectivo da Rússia é claramente o de alargar a esfera da sua influência ao ponto de impedir que outros países soberanos possam decidir livremente as suas opções de política externa. Já ameaçou a Finlândia e a Suécia. E, nesta altura, países como a Geórgia já estarão muito alarmados. E certamente a Moldova também estará apreensiva.
E quanto às negociações que deverão decorrer nesta segunda-feira entre a Rússia e a Ucrânia? É expectável que a Rússia queira mesmo negociar?
É muito difícil partir de um contexto de confrontação militar para uma negociação em simultâneo. Até porque, como frisou o ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano, a Ucrânia vai para estas negociações com a ameaça latente de uma dissuasão nuclear por parte da Rússia, o que a deixa numa posição muito fragilizada e todo o Ocidente em grande alarme. É uma medida que deve ser tentada, porque obviamente toda a gente quer a pacificação da situação rapidamente. É um esforço que o Presidente Zelensky vai ter de fazer, mas a que, à partida, já falta optimismo. Pode não ser ainda o momento de restabelecer a paz, como também já afirmou Zelensky.
E como se explica o patriotismo demonstrado pelos ucranianos?
Começava pelo exemplo de grande dignidade e que deve ser enaltecido da liderança do Presidente Zelensky. Aparece aqui como um herói na gestão de toda esta crise, desta agressão russa e dá o mote daquilo que deve ser a posição da Ucrânia no seu todo. Quer por via das suas forças militares, mas sobretudo da sociedade civil: conter até ao último minuto esta clara agressão à sua soberania nacional.
Ao longo desta crise, Zelensky emerge como um herói nacional. O modelo mais ilustrativo daquilo que é o nacionalismo ucraniano. Teve a possibilidade de poder ser retirado pelos EUA e não quis. Manteve-se no terreno, literalmente. Para mim, ele é, de facto, o símbolo emblemático da coragem ucraniana face a esta agressão militar