A Rússia invadiu a Ucrânia. À tarde, fui nadar

Quando os jovens descansam por alguns instantes, riem-se, brincam. Esquecem a competição e conversam alegremente. Penso nos jovens ucranianos que serão mobilizados ou atacados, e nas famílias em fuga.

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Reuters/STEFAN WERMUTH

Este título tem dois roubos e uma circunstância. O primeiro, a Franz Kafka, que escreveu no seu diário: “2 de Agosto de 1914: Hoje, a Alemanha declarou guerra à Rússia. À tarde, fui nadar.” O segundo, a Salvador Santos, que recordou a frase e a adaptou: “A Rússia invadiu a Ucrânia e eu fui à Póvoa passear no esplendor.” A circunstância: Correntes d’Escritas, Póvoa de Varzim, 25 de Fevereiro de 2022. À tarde, fui nadar. E chorar.

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Este título tem dois roubos e uma circunstância. O primeiro, a Franz Kafka, que escreveu no seu diário: “2 de Agosto de 1914: Hoje, a Alemanha declarou guerra à Rússia. À tarde, fui nadar.” O segundo, a Salvador Santos, que recordou a frase e a adaptou: “A Rússia invadiu a Ucrânia e eu fui à Póvoa passear no esplendor.” A circunstância: Correntes d’Escritas, Póvoa de Varzim, 25 de Fevereiro de 2022. À tarde, fui nadar. E chorar.

O adormecer na véspera fora difícil e triste. Acordar numa Europa em guerra não fazia parte dos planos. A manhã trouxe alento pelo contacto com alunos da Escola Secundária Eça de Queirós, numa sessão com os músicos Mafalda Veiga e Mû Mbana (Guiné-Bissau) e com a escritora Raquel Patriarca.

Participativos e generosos, os jovens leram e cantaram as palavras dos autores. Ninguém esperava escutar guitarra portuguesa naquela manhã, menos ainda tocada por um rapaz adolescente, Nuno Moreira. Comovente. Mas não se chora em serviço.

À tarde, depois de textos escritos e entregues à redacção, rumo à piscina municipal, ali mesmo em frente ao mar (Varzim Lazer). A má consciência inicial dilui-se rapidamente pela alegria de voltar a nadar, após três anos de impedimento por doença pessoal, primeiro, e colectiva, depois. Apetecia cantar e dançar. Assim fiz, simulando exercícios de hidroginástica na pequena plataforma em que se consegue ter pé.

A piscina é olímpica e estavam a decorrer treinos de competição entre jovens, rapazes e raparigas. Impossível não ficar hipnotizada com os corpos perfeitos a percorrer as pistas em contra-relógio. Observo-os por cima e por baixo de água naquele bailado em meio azul — um voyeurismo estético. O sol alcança meia piscina e, na metade iluminada, as bolhas e salpicos reluzem; os fatos de banho e as toucas brilham. Tão bonito.

Quando os jovens descansam por alguns instantes, riem-se, brincam. Esquecem a competição e conversam alegremente. Penso nos jovens ucranianos que serão mobilizados ou atacados, e nas famílias em fuga. Dor, tristeza e desperdício, como em todas as guerras.

Entre estes atletas nadadores, só há uma dor visível e está a diverti-los. Num momento de descoordenação, duas jovens colidem. Logo aparecem garrafas com gelo para encostar à cabeça. Sentam-se no chão à beira da piscina e não conseguem parar de rir. Contagiam-me com as suas gargalhadas.

De novo, a consciência pesa e viaja para leste. Começo a nadar de raiva contra as armas, contra a guerra, contra aqueles que nos tiraram a Europa a que estávamos habituados. Braçadas inconsequentes para qualquer latitude, com o cansaço físico a querer sossegar a mente. E lágrimas a salgar a água doce e o cloro.

No dia seguinte, na mesma sessão em que se invocou Kafka, Gonçalo M. Tavares falaria de tribos nómadas que transportam uma flecha santa. “Quando param, põem a flecha e ali é o centro do mundo.” O mesmo se passa connosco: “Todos nós, quando saímos de casa, levamos sempre esta flecha, nós pensamos sempre que somos o centro do mundo. E o outro está fora do centro do mundo, quer esteja perto quer esteja afastado.”

Segundo ele, só há uma situação excepcional: “O único grande bombardeamento benigno, se é possível falar assim, a este egoísmo absoluto é a paixão. Quando a pessoa está apaixonada, de alguma maneira, o outro pode ser o centro do mundo.”

Transpondo para a actualidade: “Temos tanta dificuldade em estarmos apaixonados. Se pensarmos em termos noticiosos, contemporâneos, a dificuldade de estarmos apaixonados por um país. Como é que nos apaixonamos por um país?”

No final, o escritor faz-me de novo pensar em água, citando Ruy Belo na fala de um homem afogado: “A mim morto no mar entre algas e corais que notícias me dais aí da superfície?” As piores. Mas continuarei a nadar e a chorar — já não estou de serviço.

Nota: Estão vingados… os editores com quem discuti durante três décadas, enquanto copydesk, por publicarem crónicas na primeira pessoa. Aqui, foi Kafka que o impôs. Desculpem, não volta a acontecer.