Ocidente tenta enfraquecer capacidade russa para resistir a queda da sua divisa
Congelamento do acesso do banco central às suas próprias reservas aumenta exposição da Rússia ao risco de queda do rublo, aumento da inflação e corridas aos bancos
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Numa escalada de sanções económicas nunca vista entre países do G20, EUA e União Europeia decidiram limitar a capacidade do banco central russo para movimentar as suas reservas, uma medida que pode deixa a Rússia mais exposta do que nunca ao risco de um cenário de queda a pique da divisa, com os preços a subir e uma eventual corrida aos bancos.
As medidas que tinham sido anunciadas durante a semana passada apontavam para a imposição de impactos negativos na economia russa que se fariam sentir de forma mais lenta e que estariam focados em alguns sectores de actividade. Mas o novo pacote de sanções decidido este sábado à noite por Bruxelas e Washington dá passos que podem ter o potencial para afectar de forma generalizada, rápida e profunda toda a economia russa.
Por um lado, dando resposta aos apelos que vinham sendo feitos ao longo dos últimos dias, os líderes europeus aceitaram bloquear o acesso de parte ou da totalidade dos bancos russos ao sistema SWIFT - o principal sistema de comunicação que os bancos utilizam para realizar transacções transfronteiriças. É uma medida que promete não só dificultar severamente o funcionamento dos bancos russos, como pode também limitar a capacidade da Rússia para importar e exportar bens, já que a concretização dos pagamentos entre as empresas fica afectada.
E depois, naquilo que é uma medida inédita para países do G20, anunciou que irão ser congeladas as reservas de activos em divisas estrangeiras detidas pelo banco central russo e que estão situadas na Europa e nos Estados Unidos. “Vamos paralisar os activos do banco central russo. Isso irá congelar as suas transacções e irá tornar impossível ao banco central transformar esses activos em liquidez”, disse Ursula von der Leyen.
Acumulação de reservas
Durante os últimos anos, aproveitando os enormes lucros obtidos com a venda de petróleo a preços elevados, a Rússia conseguiu acumular reservas de divisas estrangeiras muito significativas. De acordo com os dados disponíveis a 18 de Fevereiro, essas reservas ascendiam a 640 mil milhões de dólares (568 mil milhões de euros), um valor que corresponde a mais de 40% do PIB russo.
Essa política de acumulação de reservas foi adoptada por Moscovo para tentar preparar o país precisamente para um cenário como o que está a viver agora. Em 2014, na sequência da anexação da Crimeia, a Rússia viu, perante a imposição de sanções por parte do Ocidente, a sua divisa entrar em queda nos mercados internacionais e o banco central teve sérias dificuldades em controlar esse movimento, precisamente pelo facto de não ter nos seus cofres divisas estrangeiras em quantidades suficientes.
Quando a divisa de um país perde o seu valor nos mercados, os bancos centrais podem, usando os dólares e outras divisas que tenham em reservas, intervir comprando a sua própria moeda, algo que pode impedir a continuação da sua queda.
Com o montante tão elevado de reservas acumulado desde 2016 até agora, a Rússia estava mais confiante de que poderia ter os instrumentos necessários para limitar a depreciação do rublo que já se tem vindo a verificar nas últimas semanas (a divisa russa já está com o seu valor mais baixo face ao dólar). O banco central da Rússia anunciou mesmo na sexta-feira que iria começar a intervir nos mercados para sustentar a sua divisa.
O problema russo, verifica-se agora, é que, uma parte significativa dos 640 mil milhões de dólares de activos em divisas estrangeiras detidos pelo seu banco central estão acessíveis através dos bancos centrais do Ocidente e podem, por isso, ser alvo de medidas de bloqueio por parte das autoridades norte-americanas e europeias.
Deste modo, principalmente depois de terem sido conhecidas as novas sanções, existe a forte possibilidade de a divisa russa ser ainda mais penalizada nos mercados, com novas quedas face ao dólar e às outras divisas internacionais, um movimento a que o banco central russo poderá, afinal, ter uma capacidade reduzida para responder.
Uma queda abrupta da divisa num cenário de insuficiência de reservas por parte do banco central reduz de forma muito rápida a capacidade de o país adquirir produtos no estrangeiro. Aumenta também rapidamente as pressões inflacionistas no país, com os preços a subir por via das importações e por causa de uma eventual escassez de bens nas lojas. Por fim, pode também conduzir, assim que os agentes económicos assumirem que a perda de valor da divisa é permanente, a uma corrida aos depósitos bancários.
Para já ainda não foram definidos e anunciados os detalhes da aplicação das mais recentes sanções. E a verdade é que será desses detalhes que irá depender em larga medida a dimensão do impacto que irão produzir na economia russa.
É preciso saber, por exemplo, quando é que as reservas ficarão congeladas e se o banco central russo terá ou não tempo, entretanto, para tomar antecipadamente medidas que protejam pelo menos parte dos seus activos agora no estrangeiro. Falta também conhecer em pormenor quais os bancos russos que vão ser excluídos do Swift e se há importações e exportações que ficam isentas do bloqueio, como por exemplo as vendas de petróleo e gás natural da Rússia à União Europeia.
O problema da União Europeia com estas medidas económicas tão poderosas é que, além do forte impacto potencial que têm na Rússia, são também aquelas que mais custos podem trazer para si própria, principalmente para os países que relações comerciais e financeiras mais fortes têm com as empresas e bancos russos.
Criar dificuldades às vendas de petróleo e gás natural russos à Europa pode significar uma escassez no mercado de energia que alguns países podem ter dificuldade em suportar. A impossibilidade de os bancos processarem pagamentos através do Swift faz com que empresas que vendam bens à Rússia se arrisquem a não ver o dinheiro a chegar às suas contas. E os bancos europeus que emprestaram dinheiro a entidades russas podem, definitivamente, ter de passar a considerar essas operações como crédito malparado.
Além disso, um cenário de queda a pique do rublo, corrida aos bancos e colapso generalizado da economia russa, apesar da sua dimensão relativamente reduzida à escala mundial (apenas ligeiramente maior do que a economia espanhola, por exemplo), significaria só por si o encolhimento das relações comerciais e financeiras com esse país, com perdas inevitáveis para as economias europeias, principalmente a Leste.
É um custo que, inicialmente, os líderes europeus não pareciam estar dispostos a assumir, mas que ao fim de alguns dias de ataque à Ucrânia e da crescente indignação que se sente na opinião pública europeia, parece agora ter passado a ser considerado como mais suportável.