Serra da Estrela, um parque de diversões

Faz falta uma estrutura independente para o parque, fundos para o restaurar e cuidar, um plano ambicioso de restauro ambiental. Queremos uma Serra da Estrela viva ou destruída? Um parque à deriva ou um parque com uma visão clara, precisa e ambiciosa? Um parque natural ou parque de diversões?

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Nelson Garrido

Quando era mais novo, a serra da Estrela era um local mágico do meu imaginário de criança, pela neve, pelas vistas de montanha, pelo místico da região. Mas hoje, ao revisitar a Serra da Estrela e tendo a sorte de já ter visitado outras áreas protegidas na Europa, o sentimento mudou. Hoje sinto tristeza, dor e desilusão.

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Quando era mais novo, a serra da Estrela era um local mágico do meu imaginário de criança, pela neve, pelas vistas de montanha, pelo místico da região. Mas hoje, ao revisitar a Serra da Estrela e tendo a sorte de já ter visitado outras áreas protegidas na Europa, o sentimento mudou. Hoje sinto tristeza, dor e desilusão.

No passado, esta era uma serra viva: os rios que nasciam na montanha davam vida à paisagem circundante, os animais da serra eram muitos e diversos, as cabras montesas nas zonas acidentadas, corços, veados, javalis, cavalos e auroques nos vales; predadores como o urso, o lobo e o lince habitavam a serra e os abutres e águias nidificavam nas escarpas. A floresta de carvalhos era, também ela, rica e diversa. Mas, com o tempo, o ser humano estabeleceu-se na serra, com o fogo, os machados e as enxadas destruiu a floresta, trocou os animais selvagens pelos domésticos na montanha e nas antigas rotas de migrações (a chamada transumância) e com a espingarda caçou os restantes.

Hoje, vastas zonas que podiam ter uma floresta diversa, húmida e dominada por carvalhos, ou são plantações de pinheiros-bravos ou estão negras pelo fogo, o que reinicia a sucessão florestal a cada incêndio e mantém uma paisagem de rochas e calhaus simplificada, impedindo a fixação de carbono e criando erosão nos solos. Os animais, herbívoros, predadores e necrófagos ou são raros, ou há muito que desapareceram.

Infra-estruturas pintam a paisagem com a assinatura da mão humana. Estradas cortam a serra, ao longo do maior vale glaciar do país, até ao seu ponto mais alto. Barragens afogaram as antigas turfeiras (zonas húmidas de altitude). Nas Penhas da Saúde, edifícios em cada canto descaracterizam uma paisagem que deveria ser selvagem e há notícias de mais alojamentos turísticos. No ponto mais alto da serra, a estância de esqui e o shopping na Torre atraem turistas para uma das zonas mais sensíveis da montanha. Turbinas eólicas cercam o parque, indiferentes à diversa população de morcegos ou a antigas rotas de migração de aves.

No parque, turismo de massas é o normal. Existe um fluxo constante de carros nas principais estradas da serra e mesmo as estradas de terra batida são palco para ralis de moto 4 ou todo-o-terreno, indiferentes à paisagem e à fragilidade dos ecossistemas. Nas principais intervenções, as placas a avisar se as estradas estão abertas fazem lembrar os alertas das filas nos parques de diversões. O lema “Deixa apenas pegadas” nesta área protegida parece ser “Deixa apenas lixo”. Ruínas, lixo, garrafas de cerveja, entulho e fraldas de bebés, tudo pode ser encontrado. Situações que demonstram a falta de fiscalização, de manutenção e de limpeza do Parque Natural.

Conservação da natureza não é a prioridade nesta zona classificada, a maior de Portugal, com uma área perto dos 90 mil hectares. Pela escala do IUCN, a entidade global para a conservação da natureza, o Parque Natural da Serra da Estrela é classificado como categoria V, pouco mais do que um “parque no papel”. Várias espécies que eram abundantes ou estavam presentes quando o parque foi criado são hoje raras ou estão localmente extintas. Acções de restauro e conservação da natureza são poucas ou inexistentes. Como preparar a chegada do lobo, reintroduzir a cabra-montês e o veado, incentivar o regresso da águia-real, promover a nidificação do grifo, do britango e do quebra-ossos. Quebrar o ciclo do fogo, expandir a floresta ou controlar as plantas invasoras.

Para diminuir as inundações em Coimbra, para garantir água potável em Lisboa, na Guarda e em muitos outros locais, é preciso uma floresta viva na Serra da Estrela, que armazene e retenha água. Para prevenir os incêndios como os de 2017 é preciso uma floresta viva, que mantenha humidade nos solos e frescura no ar. Para fazer face às alterações climáticas é preciso uma floresta viva que armazene e retenha carbono.

As aves desapareceram do céu, as florestas vivas são encostas despidas e a abundância de animais deu lugar à rareza e ao vazio. Faz falta uma estrutura independente para o parque, fundos para o restaurar e cuidar, um plano ambicioso de restauro ambiental. Queremos uma Serra da Estrela viva ou destruída? Um parque à deriva ou um parque com uma visão clara, precisa e ambiciosa? Um parque natural ou parque de diversões?

Que futuro para a Serra da Estrela?