A guerra na Ucrânia desenterrou a “velha Europa”
A Europa essencial, a das democracias, preservou sem equívocos a sua união neste conflito, mas terá de encontrar novas respostas para se defender de uma ameaça declarada. Terá de encontrar resposta a uma incontornável e difícil pergunta: como travar uma potência imperialista e agressiva às suas portas?
Com as notícias sobre o início da guerra ainda quentes, vários colunistas da imprensa europeia foram notando que, depois dos ataques da Rússia à Ucrânia, a Europa mudou para sempre. O que fica para trás é imenso: quase oito décadas de paz entre as potências; a criação e a destruição de uma “cortina de ferro” que dividiu o continente em dois blocos irreconciliáveis; a unificação da maior parte dos Estados europeus numa comunidade supranacional que garantiu um espaço de paz e de prosperidade comum.
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Com as notícias sobre o início da guerra ainda quentes, vários colunistas da imprensa europeia foram notando que, depois dos ataques da Rússia à Ucrânia, a Europa mudou para sempre. O que fica para trás é imenso: quase oito décadas de paz entre as potências; a criação e a destruição de uma “cortina de ferro” que dividiu o continente em dois blocos irreconciliáveis; a unificação da maior parte dos Estados europeus numa comunidade supranacional que garantiu um espaço de paz e de prosperidade comum.
Com o regresso da guerra, o “concerto” europeu do pós-II Guerra Mundial ficou irremediavelmente comprometido. A “velha Europa” de blocos, cortinas, alianças, eixos, cínica e belicosa, está de volta. A Europa essencial, a das democracias, preservou sem equívocos a sua união neste conflito, mas terá de encontrar novas respostas para se defender de uma ameaça declarada. Terá de encontrar resposta a uma incontornável e difícil pergunta: como travar uma potência imperialista e agressiva às suas portas?
Para contextualizar a pergunta, não faltam analogias com os momentos mais sombrios da história europeia. Se havia dúvidas sobre as razões da ameaça russa, o ataque brutal desta quinta-feira acabou-as. Putin e o seu regime escondem na mentira e na dissimulação uma vontade de poder insaciável. Não é a soberania da Ucrânia que o incomoda: é a restauração de um projecto imperial desfeito nas ruínas do comunismo. Não é o possível alargamento da NATO que está em causa: é a proximidade de um Estado que se recusa à suserania de Moscovo. Não é a reivindicação de uma zona de segurança que o importuna: é haver ao lado um país que quer democracia.
O ataque à Ucrânia, percebe-se bem agora, é o corolário do que aconteceu em 2014. É essa clareza que assusta e obriga a Europa a sair da zona de conforto. A Rússia de Putin deixou de ser confiável à luz dos tratados e da boa vontade de cooperação internacional. Depois das anexações da Crimeia, da ocupação das províncias do Leste da Ucrânia, no Donbass, dos ataques desta semana e do reforço do controlo na Bielorrússia através do apoio ao seu ditador, o que pode vir a seguir? Os Estados bálticos? A Moldova? O Leste da Polónia ou a Finlândia, outrora partes do império dos czares?
A Europa mudou porque a partir de agora tem de encarar a Rússia como uma ameaça real e permanente. O ataque à Ucrânia, uma espécie de “país-irmão” na língua, na cultura ou na civilização, impõe o regresso às análises sobre a estratégia de Hitler nos anos de 1930 e os perigos do “apaziguamento”. A anexação da Áustria faz lembrar a Crimeia, a ocupação dos Sudetas a invasão do Donbass. Será a Ucrânia a Polónia de 1939? As sanções chegam para travar o imperialismo russo e evitar a repetição da História? Ou, mais tarde ou mais cedo, o Ocidente terá de recorrer à única linguagem que Putin parece perceber – a das armas?
Já se percebeu, até pelas declarações de ontem de Joe Biden, que a resposta ao ataque à Ucrânia não seguirá esse caminho. Nenhuma democracia tem hoje força moral para iniciar um conflito com uma potência nuclear. O único país disposto a derramar sangue e a causar sofrimento neste momento é a Rússia – mesmo estando longe de saber se o autocrata de Moscovo tem o apoio do seu povo.
No futuro, porém, tudo poderá mudar se o expansionismo russo se dirigir para um membro da NATO. É para esse cenário, que passou de inimaginável a impossível e depois desta quinta-feira a provável, que a Europa vai ter de se preparar. E só estará preparada se mudar as suas prioridades políticas na defesa. O chapéu da NATO tem de ser reforçado com meios próprios e autonomia.
Por muito que custe, os tempos da paz certa e segura no continente são passado. Uma nova Guerra Fria teve início. A Rússia assumiu-se como uma potência hostil. O mundo perigoso e cínico que só existia longe instalou-se na porta ao lado. Com os mísseis a atingir Kiev, deixou de ser possível ignorá-lo.