Noite Incerta, chama-lhe o título português, em alternativa à “noite em que não se sabe nada” do título internacional, e ambos estão correctos, porque o filme de Payal Kapadia se dirige inteiramente (e filmes destes rareiam numa época em que tudo tende a vir bem explicadinho para evitar mal entendidos) à incerteza do espectador, fazê-lo passar pelo filme como por uma noite em que não sabe nada. Noite Incerta ganhou o prémio de melhor documentário no festival de Cannes de 2021, mas mesmo essa classificação (a do documentário) é… incerta, num filme que concilia imagens de arquivo e “objets trouvés” com uma lógica ficcional que assenta também em “objectos achados”: um conjunto de cartas escritas por uma estudante de cinema (que assina, apenas, L.) em meados da década passada ao seu namorado, cartas atravessadas ou dilaceradas por várias questões políticas da Índia contemporânea — a oposição ao poder de Modi, os protestos universitários, o movimento de contestação ao sistema de castas. Na atmosfera quase etérea do filme, com um preto e branco que unifica (e baralha) o que é do “arquivo” e o que foi expressamente filmado por Kapadia e pelos seus colaboradores, tudo é recebido pelo espectador como se tivesse acontecido há muito mais tempo, como se estivéssemos perante um filme que viesse dum futuro distante de algumas décadas e se pusesse a reflectir, quase arqueologicamente, sobre os últimos anos da década de 2010. É uma forma rara de falar sobre política ou sobre sociedade, tanto mais que a forma evanescente e evocativa de Noite Incerta guarda, afinal, um olhar sobre assuntos bastante concretos.
Opinião
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