Putin quer uma mudança de regime em Kiev e ameaçou o mundo
Num discurso destinado aos russos, aos ucranianos e aos líderes mundiais, Putin repetiu a sua visão da Ucrânia e responsabilizou os EUA e os seus aliados europeus pelas operações militares russas.
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Num discurso de meia hora, que coincidiu com o arranque daquilo a que chamou “uma operação militar especial” na Ucrânia, pouco antes das 6h, Vladimir Putin afirmou que Moscovo quer “desnazificar” o país vizinho e defender aqueles que na sua visão são ali vítimas de “genocídio”. Depois de se referir à Rússia como “um dos mais poderosos poderes nucleares” do mundo, avisou os outros países contra “a tentação de se intrometem”, já que a resposta russa aos que se atreverem vai implicar “consequências” com que nunca se depararam “na história”.
Deixando claro que “a Ucrânia não é o seu alvo final”, escreve o jornalista Simon Shuster na revista norte-americana Time, “o líder russo focou-se nos Estados Unidos e nos seus aliados”, responsáveis por criarem as “ameaças fundamentais” que o levam a atacar a Ucrânia.
Nas palavras de Putin “o chamado bloco ocidental formado pelos Estados Unidos à sua imagem e semelhança é, inteiramente, o mesmo ‘império de mentiras’” que alguns políticos, analistas e jornalistas norte-americanos alegam “ter sido criado recentemente” no seu país. Foi esse bloco que criou as “ameaças fundamentais” que o deixaram “sem outra opção para defender a Rússia” e o seu povo.
A ideia de “desnazificar” a Ucrânia foi a que mais reacções suscitou entre os académicos que se dedicam à região, motivando, ao mesmo tempo, uma emocionada intervenção por parte do Presidente ucraniano, Volodomir Zelensky. Uma mensagem lida como destinada a consumo interno – aquilo que o Presidente russo quer que os russos pensem sobre o que está acontecer – mas também uma forma de deixar claro que Putin quer ver outra liderança em Kiev.
Acusando os chamados países ocidentais de fazerem da Ucrânia um país “hostil anti-Rússia” nos seus “territórios históricos”, Putin invocou o direito à autodefesa consagrado no Artigo 51 da Carta das Nações Unidas. Em seguida, explicou que o objectivo desta “operação militar” é proteger os que têm sido alvo de humilhações e genocídio nos últimos oito anos”, os falantes de russo, “milhões de pessoas que vivem lá e que depositam a sua esperança na Rússia”: “Para isto lutaremos pela desmilitarização e desnazificação da Ucrânia”, garantiu.
“Estes apelos equivalem a uma intenção de mudança de regime”, escreve no Financial Times Max Seddon, chefe da delegação do jornal britânico em Moscovo. “A Rússia afirma que a Ucrânia está sob controlo de radicais inspirados por nacionalistas que lutaram contra a União Soviética ao lado nos nazis na Segunda Guerra Mundial”, continua Seddon. São estes, diz Putin, que “terão na consciência” toda a “responsabilidade do possível derramamento de sangue”.
Ao garantir que a Rússia vai “entregar todos os que cometerem crimes de sangue contra civis, incluindo cidadãos russos, à justiça”, Putin sugere “que em breve estará em condições de o fazer”, nota Seddon.
Apesar de assegurar que não tem planos para a Rússia ocupar a Ucrânia, escreve o jornalista, não deixa dúvidas de que pretende redesenhar as suas fronteiras e que os seus objectivos vão além da região do Donbass, onde ficam os dois territórios separatistas cuja autoproclamada independência foi reconhecida pelo Presidente russo na segunda-feira, e onde se estima que a maioria da população fale russo. Territórios que “são parte da Ucrânia actual”, mas cujas populações não foram ouvidas “sobre como queriam construir as suas vidas quando a URSS foi criada ou depois da Segunda Guerra Mundial”.
“Eles”, os “países líderes da NATO que apoiam os nacionalistas de extrema-direita e os neonazis na Ucrânia”, vão “sem dúvida tentar trazer a guerra para a Crimeia, como fizeram no Donbass, matar inocentes, tal como os membros das unidades de nacionalistas ucranianos e os cúmplices de Hitler fizeram na Grande Guerra Patriótica [termo de referência dos soviéticos para a Segunda Guerra]”, acusou Putin. “Eles também já reivindicaram abertamente outras regiões russas”, acrescentou.
“Não se trata de uma operação limitada ao Donbass, é uma operação militar com objectivos de guerra maximalistas e com a intenção de mudança de regime”, escreveu no Twitter Michael Kofman, director de Estudos Russos no CNA, um think tank com sede em Washington.
Recorrendo insistentemente à ideia de que os protestos da Praça Maidan, que levaram à queda de Viktor Yanukovich, em 2014, foram um golpe de Estado nazi, Putin está há muito empenhado em desacreditar a legitimidade do Estado ucraniano a existir. A diferença é que agora o fez em simultâneo com ataques aéreos e avanços de tanques.
Ninguém desmente a existência de milícias ucranianas de extrema-direita – o conhecido Batalhão de Azov, um dos mais ferozes dos que desde 2014 lutam ao lado do Exército da Ucrânia no Donbass, tem na sua bandeira um símbolo usado por divisões das SS nazis e descreve a sua missão como “liderar as raças brancas do mundo numa cruzada final pela sua sobrevivência”. O que não é o mesmo do que considerar o actual Governo da Ucrânia “cúmplice de Hitler” ou do que o acusar de “genocídio”, como faz Putin.
“Como posso eu ser nazi?”
A resposta do Presidente Zelensky foi dada em russo. “Como pode um povo que perdeu mais de oito milhões de vidas na vitória contra o nazismo apoiar os nazis? Como posso eu ser nazi?”, perguntou Zelensky, um judeu. “Digam isso ao meu avô, que fez toda a guerra na infantaria do exército soviético e morreu como coronel na Ucrânia independente.”
Depois de descrever o “sistema de relações internacionais” e a reorganização do mundo levada a cabo pelos que se declararam vencedores da Guerra Fria”, enumerando algumas das consequências do “sentimento de absoluta superioridade” e “arrogância” que os invadiu – “uma operação sangrenta contra Belgrado” e as guerras no Iraque, Líbia e Síria – Putin termina com os seus avisos aos que se “intrometerem” no seu caminho.
Mesmo depois da desintegração da URSS e de ter perdido “uma parte considerável das suas capacidades”, a Rússia mantém-se como “um dos mais poderosos estados nucleares” e tem até “uma certa vantagem em várias armas de ponta”, numa mensagem que, segundo o jornal The New York Times, “pareceu quase ameaçar uma guerra nuclear”.
“Neste contexto, ninguém deve duvidar que qualquer potencial agressor vai enfrentar a derrota e consequências nefastas caso ataque directamente o nosso país”, avisou Putin em seguida.
Mais vagos são os avisos “às forças externas” que podem avançar em defesa da Ucrânia, e que à luz de todo o discurso só podem ser os EUA e os países europeus. “Quem quer que se atravesse no nosso caminho, ou mesmo quem nos ameace a nós e ao nosso povo, deve saber que a resposta russa vai ser imediata, e levará a consequências que nunca enfrentaram na vossa história”, ameaçou, sem esclarecer exactamente o que entende por “atravessar-se” no caminho da Rússia.