Lá vai um, lá vão dois, três “acordos” a pairar – e a falhar
Se há vítima maior do AO90, não sendo o único dos seus “muitos males”, é sem dúvida a fonética.
Pelo título, podia ser um texto sobre a Ucrânia, a Rússia e o fogo que nunca parou – apesar dos “cessares”, declarados só para entreter. Mas não. É uma resposta, já algo atrasada, a um desafio lançado por um leitor que, comentando a crónica onde se falava de Brel e do advento da rosa por via eleitoral (Costa acabara de vencer por maioria absoluta), deixou, em clara defesa do Acordo Ortográfico de 1990, esta sugestão: “O AO segue e seguirá o seu caminho. […] Um tema para a próxima crónica: os AOs, todos, pois parece que apenas houve este último, culpado de todos os males.” É uma boa sugestão, que hoje sigo. É, aliás, muito fácil fazê-lo.
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Pelo título, podia ser um texto sobre a Ucrânia, a Rússia e o fogo que nunca parou – apesar dos “cessares”, declarados só para entreter. Mas não. É uma resposta, já algo atrasada, a um desafio lançado por um leitor que, comentando a crónica onde se falava de Brel e do advento da rosa por via eleitoral (Costa acabara de vencer por maioria absoluta), deixou, em clara defesa do Acordo Ortográfico de 1990, esta sugestão: “O AO segue e seguirá o seu caminho. […] Um tema para a próxima crónica: os AOs, todos, pois parece que apenas houve este último, culpado de todos os males.” É uma boa sugestão, que hoje sigo. É, aliás, muito fácil fazê-lo.
Em primeiro lugar, convém dizer que a existência de acordos ortográficos é uma originalidade da língua portuguesa, não há notícias deles em qualquer outro idioma – e não são poucos os que têm reconhecidas variantes ortográficas, basta conferir (é fácil) a lista no “corretor [sic] ortográfico” do programa de texto Word. Em segundo lugar, os “AOs todos” são apenas dois: o de 1945 e o de 1990. O que houve antes disso foram reformas ortográficas: o Brasil aprovou uma, em 17 de Agosto de 1907, ainda Machado de Assis presidia à Academia Brasileira de Letras (ABL); e Portugal aprovou outra, a 1 de Setembro de 1911, instaurada a República e assinada por António José de Almeida, para que se adoptasse “a ortografia proposta pela comissão” – onde pontuavam Gonçalves Viana, Leite de Vasconcelos ou Adolfo Coelho.
Cada um tratou da sua, ponto final. Assim continuou o Brasil, que em 1943 aprovou, de novo na ABL, um Formulário Ortográfico para a organização de um Vocabulário Ortográfico. Mais uma vez, antes de Portugal que, em 1945, tentou pela primeira vez um Acordo Ortográfico com o Brasil. Já era demasiado tarde, mas ninguém quis saber. Lá se fizeram as cerimónias do costume, num texto de pendor “lusitanista” que o Brasil só aceitou no papel, rasgando-o dez anos depois. Na Base VI, lia-se: “Conservam-se [cç, ct, pc, pç, pt], após as vogais a, e e o, nos casos em que não é invariável o seu valor fonético e ocorrem em seu favor outras razões, como a tradição ortográfica, a similaridade do português com as demais línguas românicas e a possibilidade de, num dos dois países, exercerem influência no timbre das referidas vogais: acção, activo, actor, afectuoso, arquitectura, colecção, colectivo, contracção, correcção”, etc.” Tudo teria acabado ali, se em lugar de “conservam-se” se tivesse escrito “conservam-se nos países onde for comprovada a sua utilidade”: Portugal e Brasil seguiriam a norma consoante a comprovada utilidade local. Mas a obsessão de uma ortografia “unificada” afundou tudo.
E chegamos ao segundo Acordo Ortográfico (AO90), “culpado de todos os males”, para citar a observação irónica do leitor. Que males serão esses, afinal? Um brasileiro explicou-os bem, numa extensa entrevista em vídeo publicada no YouTube em 2014. Trata-se de Sergio Pachá, antigo Lexicógrafo-Chefe da Academia Brasileira de Letras e afastado depois da promoção gongórica do Acordo Ortográfico. Vale a pena ouvir toda a entrevista (tem quase 49 minutos). Porém, o excerto que para aqui interessa surge aos 7m14s: “Tentaram, uma vez mais, promover esta quase utopia da unificação gráfica de realidades fónicas distintas e deram com os burros n’água. Não só deram com os burros n’água como pioraram uma coisa que tinha defeitos, mas que não era tão má assim. Isso foi mau para nós, brasileiros, e foi muito mau para os nossos irmãos portugueses.” Realidades fónicas distintas, eis o ‘x’ do problema (para citar de novo um brasileiro, esse magnífico criador de canções que foi Noel Rosa). Ou seja, o acordo que se diz pautado pela fonética é o primeiro a tentar erguer-se sobre as cinzas da fonética, sacrificando-a no Brasil (adeus, idéia) e muito mais em Portugal, desprezando as especificidades da fala.
Vejamos: com a “norma” de 1990, e suprimidos os antigos sinais diacríticos (o das consoantes ditas “mudas”), o som das vogais em substantivos morfologicamente semelhantes fica ao sabor da memória dos falantes: aspeto (è) e espeto (ê); fação (à) e nação (â); fator (à) e favor (â); diretriz (è) e meretriz (e mudo); coleta (è) e colete (ê); corretor (è) e corretor (e mudo); senhor (e mudo) e setor (è); doação (uâ), coação (uâ, acto de coar) e coação (uà, acto de coagir); redação (à) e relação (â); vetor (è) e temor (e mudo). Os exemplos são às centenas, mas esta curta amostra justifica a cegarrega do título. Se há vítima maior do AO90, não sendo o único dos seus “muitos males”, é sem dúvida a fonética. Só ouvidos moucos poderão ignorá-lo.