Rayan: Quanto tempo são cinco dias?
O tempo é incerto, contraditório, joga com a esperança e com a dúvida, com a paciência e com a ansiedade, com a confiança e com o medo. Ou será que não é o tempo que joga?
Vivemos no reino dos significados. As circunstâncias em que vivemos são experimentadas por nós através do significado que lhe damos; as circunstâncias não valem pelo significado em si mesmo, mas pela sua interpretação. É certo, então, que não existe um significado definitivo ou 100% certo para o que quer que seja. “O reino dos significados é o reino dos erros”, escreveu o psicólogo Alfred Adler (fundador da psicologia do desenvolvimento individual) em What Life Should Mean To You (1932).
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Vivemos no reino dos significados. As circunstâncias em que vivemos são experimentadas por nós através do significado que lhe damos; as circunstâncias não valem pelo significado em si mesmo, mas pela sua interpretação. É certo, então, que não existe um significado definitivo ou 100% certo para o que quer que seja. “O reino dos significados é o reino dos erros”, escreveu o psicólogo Alfred Adler (fundador da psicologia do desenvolvimento individual) em What Life Should Mean To You (1932).
Partilho aqui, em busca de uma catarse (egoísta, eu sei), a dolorosa reflexão que emergiu em mim nos longos e breves cinco dias em que Rayan, um menino marroquino de cinco anos, esteve nas profundezas de um poço em Bab Berred, na província rural de Chefchaouen, no norte do Marrocos. “Longos e breves cinco dias.” A expressão enferma, como se facilmente se percebe, de violenta contradição. Como pode algo ser simultaneamente longo e breve? A resposta é mais simples do que pode suscitar a descabida contradição. Falamos do tempo, e o reino do tempo é o reino da relatividade. O tempo é incerto, contraditório, joga com a esperança e com a dúvida, com a paciência e com a ansiedade, com a confiança e com o medo. Ou será que não é o tempo que joga?
“O tempo absoluto, verdadeiro e matemático, por si mesmo e por sua própria natureza, flui igualmente sem relação com nada de externo, e com outro nome, é chamado de duração”, explicou Isaac Newton há muitos séculos. Nesse caso, por que é que às vezes sentimos que o tempo passa depressa e noutras parece que está parado? Explicando de uma forma resumida e simplista, digamos que são as nossas emoções e as nossas expectativas que nos fazem ver o tempo passar mais depressa ou mais devagar. Ou seja, o tempo como o vemos — não o tempo do relógio, cronológico, social, colectivo, pautado pelos segundos, minutos, horas, dias — é uma construção particular e elástica.
“O estado mental do observador desempenha um papel crucial na percepção do tempo”, concluiu Albert Einstein num curto artigo intitulado “Efeitos da percepção sensorial externa sobre a dilatação do tempo”, publicado em 1938 no Journal of Exothermic Science and Technology. Foi também neste artigo que Einstein explicou, de forma que alguns críticos consideraram como provocadora, o que era a relatividade: “Quando um homem se senta ao lado de uma mulher bonita durante uma hora, parece que passou um minuto. Mas quando ele se senta sobre uma grelha quente durante um minuto, parece que passou mais de uma hora. Isso é a relatividade.”
Durante os cinco dias em que Rayan esteve enfiado naquele buraco, a 32 metros de profundidade, vivi entre a escuridão e a claridade, o poço e o exterior do poço, Rayan e as equipas de resgate (que escavaram até com as próprias mãos), Rayan e os seus pais. Desejei que passasse rápido o tempo do resgate, mas ao mesmo tempo desejei que não passasse muito tempo para que a passagem do tempo não causasse danos físicos e psicológicos graves ao pequeno Rayan.
Mais contradições: na noite de sexta-feira, antes de me deitar, espreitei os meus filhos e, vendo-os seguros e tranquilos, sorrindo para os anjos, senti-me inundado por uma sensação de conforto físico e de sossego. Desejei que a sua noite de sono fosse longa e revigorante. Mas depressa se abateu sobre mim um peso de silêncio e de angústia, como se uma imensa porção de terra me cobrisse dos pés à cabeça e me sufocasse. “E a criança lá está. Estarão mais próximos? Faltará muito? Pobrezinho. Desejo que a noite seja breve, que o dia chegue rápido para que vejam melhor o que andam a fazer, para que vejam melhor o caminho para o salvar. Mas qual dia?! No buraco não há dia, só noite, só escuridão e silêncio. Não há referências, o tempo é infinito0148, disse para mim próprio, e corri a apontar a frase.
0147Vou escrever um texto quando o tirarem de lá, um texto para celebrar a salvação, a sobrevivência, a vida!”, murmurei com a boca adocicada de esperança. Este derradeiro pensamento antes de dormir funcionou como um bálsamo que me anestesiou em segundos. Às quatro da manhã, acordei depois de sonhar que tinha morrido. Sentei-me a espernear, tentando fugir do inevitável, até que me apercebi de que estava vivo. Senti-me feliz, ainda que por pouco tempo. “Estou feliz e triste.” Outra contradição. Ao lembrar-me de Rayan, um pavor existencial tomou conta de mim e senti-me descrente no sentido da vida. Levantei-me. As crianças ainda dormiam. “E Rayan?” Não liguei a televisão. O sol nasceu novamente. “É o quinto dia. Tanto tempo. Despachem-se, pá!”
A tarde findou sorridente: o resgate estava iminente. “O menino está vivo.” Caiu a noite e um fantasma gelado congelou a ilusão e sussurrou a brisa mortífera do desengano. O fio da vida é frágil. A morte é certa, mas parece também ser a salvação para quem sofre. Repito agora essa ideia como um mantra, procurando consolo (egoísta, eu sei), e dou um abraço, que pretendo infinito, a Rayan, meu querido menino.
Jornalista, palestrante e autor dos livros O Sofrimento Pode Esperar (2016, Ed. Albatroz) e Quantas vidas temos? (2019, Coolbooks)