Em que momento se tornaram politicamente incorrectos os sete anões?
Começo pelo início: quais são, exactamente, os preconceitos horríveis do filme animado? Aliás, em poucos outros filmes está a natureza humana tão diversificadamente representada: cada um dos sete tem uma personalidade diferente, do Zangado ao Soneca.
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Querida Mãe,
Quer ficar com os cabelos em pé com até onde chega o politicamente correcto?
O actor Peter Dinklage, que sofre de uma forma de nanismo, acusou a Disney de preconceitos, por manter os sete anões no remake de A Branca de Neve... e os Sete Anões, que já vai substituir a pálida princesa por uma actriz latino-americana. Face a isto, a Disney apressou-se a emitir um comunicado em que afirma que, “para evitar reforçar os estereótipos do filme animado original”, vai “assumir uma abordagem diferente para estas sete personagens” e que tem estado a consultar “elementos da comunidade das pessoas com nanismo” para tal. Aparentemente, mas esta parte não está confirmada, pondera substituir os anões por criaturas mágicas.
Começo pelo início: quais são, exactamente, os preconceitos horríveis do filme animado? Aliás, em poucos outros filmes está a natureza humana tão diversificadamente representada: cada um dos sete tem uma personalidade diferente, do Zangado ao Soneca. Além disso, são gente honesta, que canta a caminho do trabalho, exemplos de generosidade e coragem pela forma como acolhem uma princesa perseguida, correndo risco de vida para a proteger de uma bruxa má. Decididamente, não vejo como tudo isto possa ser negativo (mas estou aberta a argumentos contrários!).
Mas para lá deste caso caricato, a questão de fundo fica: como podemos continuar a recriar e honrar a arte que foi feita num outro tempo e o seu contexto, sem a distorcer na ânsia de lá meter dentro todas as mudanças sociais que, entretanto, aconteceram? Não acabamos por fazer um desfavor enorme à sociedade, inclusive às novas gerações, ao modificar e reescrever estas histórias?
Temo que este medo de ofender alguém com o que dizemos e fazemos se torne um enorme espartilho à liberdade de expressão. Isto vale para qualquer assunto, do cinema à covid — não podemos limitar-nos a debater os assuntos sem tornarmos a opinião contrária à nossa como um atentado à liberdade? Não era bem melhor investir o tempo e o esforço a ajudar os nossos filhos/netos/alunos a pensar, desenvolvendo a sua capacidade de analisar as questões de forma crítica?
Beijos
Ana,
Os meus cabelos estão em pé. Literalmente.
Impedir que existam sempre pessoas que se “ofendem” não está nas mãos de ninguém, e podemos até ter simpatia pelas suas dores, mas o que assusta é que sejam capazes de nos amedrontar, levando-nos ao absurdo. Como é possível que uma indústria como a Disney, repositório de uma herança de imaginação e fantasia, se disponha a formatar o mundo à imagem do politicamente correcto?
Até te podia contar os mitos que chegam dos confins do tempo que falam do povo dwarf que vivia nas montanhas, explorando minas de ouro — e que encontras maravilhosamente descrito nos livros do J.R.R. Tolkien —, e perguntar-te se também vão acabar com o Gulliver ou se vai haver um protesto das pessoas de orelhas em bico contra os elfos, eliminando-os de O Senhor dos Anéis, mas o ponto nem é rebater a ofensa do actor em causa mas, como tu dizes, protestar contra quem se verga a esta ditadura de querer agradar a todos em simultâneo. E que, basicamente, em lugar de privilegiar aquilo que temos em comum, a essência humana, os valores, coloca o enfoque exactamente naquilo que não queremos valorizar: a altura, a cor da pele, o facto de sermos canhotos ou destros, a nossa orientação sexual.
Mais, esta ideia de que é legítimo perverter as histórias, as lendas, a arte dos nossos antepassados aos ditames das redes sociais. Que a Disney ceda desta forma é a prova de que o poder do politicamente correcto é muito real. E assusta-me, Ana, porque esta é depois a lenha que alimenta os discursos radicais e extremistas dos políticos da nossa praça e não só.
Tenho dito por hoje.
No Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Mas, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram.