Restaurante-escola que apoia integração dos sem-abrigo volta a abrir ao público

Fechou portas com a pandemia para distribuir refeições a quem mais precisava. Esta quinta-feira, o É Um Restaurante, da associação Crescer, volta à missão original: dar formação e oportunidade de emprego a pessoas em condição de sem-abrigo – num restaurante aberto ao público como qualquer outro.

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“É quase meio utópico para eles agora abrir as portas e ter este contacto directo com o público”, reage Nuno Bergonse, chef consultor do É Um Restaurante. Depois de largos meses com o espaço transformado “quase numa fábrica” de confecção, embalamento e distribuição de refeições, as mesas voltaram ao lugar, a decoração está “mais acolhedora”, a carta renovada. E, esta quinta-feira, os sete formandos que se mantêm da terceira turma vão, pela primeira vez, ter contacto com os clientes. Quase dois anos depois, o projecto É Um Restaurante está de volta à sua “essência”: “ser um restaurante normal, de portas abertas ao público, em que a única diferença é que as pessoas que cá trabalham estão em formação e estiveram na rua”.

Lançado em 2019 pela associação Crescer, neste restaurante-escola na Rua de São José, em Lisboa, os serviços de atendimento ao cliente, cozinha e sala são assegurados por pessoas que estão ou estiveram em situação de sem abrigo. O objectivo passa por dar-lhes formação na área de restauração e criar oportunidades de emprego. No entanto, cinco meses após a inauguração, tal como todos os outros restaurantes, o projecto viu-se obrigado a fechar portas devido à pandemia. Manteve-se depois em funcionamento, mas só agora volta a receber clientes num formato de restauração aberta ao público.

Com a pandemia, como várias associações e projectos que distribuíam comida nas ruas de Lisboa deixaram de conseguir fazê-lo por falta de voluntários nas equipas, o projecto decidiu assumir esse papel. “Foi um bocadinho irónico, no sentido em que foram as próprias pessoas em situação de sem abrigo que, numa situação de crise, quiseram começar a cozinhar e a fazer distribuição de comida a outras pessoas que ainda estavam a viver na rua”, recorda Américo Nave, director executivo da Crescer. Entretanto, receberam um pedido da Câmara Municipal de Lisboa para assumirem o fornecimento de refeições para “alguns centros de abrigo” da cidade, financiado até Dezembro de 2021.

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Para dar resposta à confecção de centenas de caixas de comida todos os dias – “chegámos a fazer 600”, nota Américo Nave –, todo o restaurante foi transformado numa linha de produção. Foi preciso colocar câmaras frigoríficas na sala, juntar mesas para aumentar o espaço de produção e embalamento. “O restaurante degradou-se bastante”, resume Nuno. Por isso, terminado o serviço de distribuição de refeições no final do ano passado, as últimas semanas têm sido de obras de renovação e, para responder a “algumas críticas de que o espaço era um pouco frio”, a nova decoração também procura ser “um bocadinho mais acolhedora”, acrescenta Américo, com candeeiros, espelhos, bancos corridos, toldos. “Está com muito mais pinta e elegante”, descreve Nuno Bergonse.

A carta também apresenta novidades. Se no início concentrava-se na vertente de partilha e no receituário português, agora querem “desprender-se um bocado dessa filosofia”, para trazer outros sabores e acrescentar pratos principais “de conforto”. Mais do que um conceito gastronómico ou estilo de cozinha, estão a procurar que a ementa reflicta diferentes técnicas e tipos de confecção que os formandos possam aprender e aperfeiçoar ao longo do tempo. Além dos rissóis de berbigão e salicórnia, “que na altura eram um sucesso”, afiança Nuno, a carta inclui, por exemplo, sopa de castanhas com aipo e uvas tintas; feijoada de javali; raia com molho de curcuma, esmagada de batata e acelgas; ou açorda de camarão com tomate e alga, numa “variante mais exótica”, revela o chef. A média de preços por refeição andará à volta dos 20 euros.

Numa das paredes da sala, existe agora uma “ardósia gigante”, onde a ementa vai sendo anunciada, assim como em versão digital. O formato em papel, no entanto, acabou, não só numa tendência da pandemia que terá vindo para ficar, mas para “facilitar muito a transição de pratos”, aponta Nuno. A carta, diz, será sazonal, mas não querem “ficar presos às quatro estações do ano”. “Se não houver javali ou se nos apetecer trabalhar outro produto, vamos mudar. Depois, como recebemos algumas doações de parceiros que são produtores, se vier algum excedente, será uma maneira maravilhosa de escoar.”

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A um dia da reabertura, a equipa estava muito entusiasmada, contava o chef. “Está tudo com muita vontade, porque foram dois anos assim meio cinzentos.” Apesar de estar em formação há algum tempo, a turma de sete formandos que esta quinta-feira abre o restaurante ainda não tinha tido contacto com clientes. “Estão todos muito contentes, excitados e com vontade de fazer bem e de fazê-lo todos os dias.”

Metade dos formandos estão no mercado de trabalho

Apesar da pandemia, Américo Nave faz um “balanço bastante positivo” de mais de dois anos de projecto, ainda que o contexto não tenha sido “o ideal em termos de formação” por não terem estado “mesmo a servir às mesas”. Houve “menos organização no processo”, num local que “não estava apropriado” para “fazer 600 refeições”, assume.

No entanto, das cerca de 40 pessoas que concluíram a formação, “mais ou menos 50%” estão integradas no mercado de trabalho. Das duas primeiras turmas, 15 pessoas têm emprego ou estão a fazer um estágio profissional, embora nem todas no sector da restauração. “Também estão aqui a criar rotinas de cumprir horários, de trabalhar em equipa, de cumprirem determinadas directrizes, no fundo, para ganhar experiência no mundo de trabalho. E até pode servir para que as pessoas percebam que não é restauração o que querem fazer.”

O acompanhamento “muito próximo” da psicóloga do projecto tem sido determinante, defende o responsável, contribuindo para que as pessoas “não desmotivem nem desacreditem” quando as coisas não correm bem. Américo recorda o caso de “uma pessoa que foi trabalhar para uma cafetaria”. “Chegou a uma altura em que falou com a nossa psicóloga e disse que não estava a aguentar, que não gostava do trabalho, que ia desistir.” A conversa foi importante para perceber que “queria trabalhar na área de cuidados a idosos”. “Está, talvez, há quase um ano lá e parece-me que as coisas estão a correr bastante bem.”

Outro dos aspectos que destaca é a melhoria da condição de vida dos formandos, em termos de saúde e sociais, “mesmo que não tenham entrado no mercado de trabalho”. Através de uma das parcerias, estabelecida com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, por exemplo, todos os que estiveram em formação no restaurante (em média, metade acaba por desistir nas fases de formação anteriores) “beneficiaram de tratamento de saúde oral completo”. O acompanhamento com a psicóloga também tem procurado “sempre melhorar a condição habitacional” dos formandos, “para que não voltem à situação de sem abrigo”.

A pandemia, no entanto, trouxe contratempos. De Outubro de 2019 até Março de 2020, o projecto “estava a correr muito bem”, recorda. “Por um lado, o restaurante tinha bastantes clientes. Por outro, tínhamos mais pedidos de outros restaurantes a querer absorver os nossos formandos do que formandos”. Tudo se inverteu com a pandemia. O facto de não terem estado abertos ao público faz com que não consigam ser “tão autónomos” financeiramente como “gostavam de estar nesta altura” para “depender essencialmente dos serviços do restaurante em termos de sustentabilidade do próprio projecto”.

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“Também já deveríamos ter feito mais turmas”, reconhece. Mas acabaram por criar metade do que tinham estimado inicialmente (três por ano, que querem retomar com a reabertura do restaurante), porque, com a pandemia, houve “muito mais dificuldade em colocar as pessoas no mercado de trabalho”. “Agora já começamos a sentir outra vez por parte de alguns parceiros uma maior procura de recursos humanos.” A quarta turma, para já de 24 pessoas, começa agora a formação. Primeiro, terão um mês de formação técnica na Escola Superior de Hotelaria e Turismo de Lisboa, depois quinze dias junto da equipa da Crescer, onde desenvolvem competências pessoais e relacionais com os técnicos da associação. Segue-se a formação “on the job” no é Um Restaurante, de cerca de quatro a seis meses.

Em breve, o conceito vai multiplicar-se a outro projecto, de maior dimensão, no Bairro Padre Cruz, em Lisboa. O É Uma Mesa estava previsto abrir em Setembro do ano passado, mas “houve algumas dificuldades também na angariação de fundos, porque implica uma obra de fundo com um orçamento elevado”, avança Américo. No entanto, as obras já estão a decorrer e a nova pizzaria deverá abrir portas “no início de Março”.