Ser vegetariano “é só para ricos”? Fomos às compras descobrir que “é mais um mito”
A alimentação vegetariana só é mais cara se incluir os ultraprocessados. Um estudo publicado na Lancet Planetary Health mostra que, nos países europeus, uma dieta sem produtos de origem animal permite “cortar até um terço na conta do supermercado”. Em Portugal, os produtos vegan “ainda são poucos e caros”.
Leite magro, pescada e carne de peru num dos carrinhos; bebida de soja, seitan e feijão vermelho no outro. Fomos às compras com duas listas no bolso e uma pergunta no ar: um dia a comer 100% vegetariano é mais caro do que um dia com alimentos de origem animal? A conclusão é nem carne nem peixe: a alimentação vegetariana pode ser mais barata, excepto quando colocamos os produtos processados no centro do prato.
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Leite magro, pescada e carne de peru num dos carrinhos; bebida de soja, seitan e feijão vermelho no outro. Fomos às compras com duas listas no bolso e uma pergunta no ar: um dia a comer 100% vegetariano é mais caro do que um dia com alimentos de origem animal? A conclusão é nem carne nem peixe: a alimentação vegetariana pode ser mais barata, excepto quando colocamos os produtos processados no centro do prato.
Muitas vezes descrita como uma dieta elitista e pouco democrática, a alimentação vegetariana pode ser “nutricionalmente adequada” e “economicamente justa”, informa a Direcção-Geral da Saúde (DGS), tanto para a restauração colectiva como no consumo individual.
Um estudo publicado em Novembro na Lancet Planetary Health concluiu que uma dieta saudável e quase sem carne e lacticínios pode não só não ser mais cara nos países desenvolvidos europeus, como permite “cortar até um terço na conta do supermercado”.
“Achamos que o facto de as dietas veganas, vegetarianas e flexitarianas poderem ajudar a poupar muito dinheiro vai surpreender as pessoas”, disse o investigador principal Marco Springmann, da Universidade de Oxford. A equipa de investigação estimou que uma dieta ocidental convencional custa em média 44 euros por semana, por pessoa. Deixar de fora os produtos de origem animal reduziria o preço para 29 euros, uma poupança de quase 800 euros por ano.
É importante referir que nos cálculos não entraram as refeições prontas a comer ou os ultraprocessados, como hambúrgueres e salsichas vegetarianas.
“As pessoas ficam iludidas quando vão aos supermercados porque vêem os rótulos vegan e vegetarianos nestes alimentos e assumem que são a base desta alimentação, quando na verdade devem ser consumidos muito pontualmente”, diz Nuno Alvim, presidente da Associação Vegetariana Portuguesa (AVP).
Estão disponíveis opções cada vez mais competitivas nas bebidas vegetais, tofu e seitan, substitutos populares do leite e das proteínas animais, mas, nas alternativas a iogurtes, queijos e preparados com textura e sabor próximo da carne, “são poucas as excepções em que o preço é equiparável” às opções tradicionais.
O mesmo concluiu a Deco Proteste, em Dezembro de 2021, depois de comprar mais de 50 produtos vegetarianos. Nos supermercados portugueses, as alternativas ao queijo podem custar quatro vezes mais; “os hambúrgueres e os panados vegetarianos exigem um esforço orçamental de mais dez euros do que o formato conservador”; “na carne picada e nas almôndegas, a diferença ronda os nove euros, enquanto as salsichas enlatadas de soja e de carne distam seis”.
A organização de defesa do consumidor portuguesa alertou para o “custo discriminatório” e salientou a importância de aproximar os custos, “para que funcionem, na prática, como alternativas”. Mas estes ultraprocessados à base de proteína de ervilha reidratada, de soja ou trigo desidratados não devem ser considerados uma alternativa à carne, pelo menos tendo em conta a quantidade que é consumida na sociedade portuguesa.
Segundo as linhas de orientação para uma alimentação vegetariana saudável, da DGS, a base de uma alimentação que tira a carne e o peixe do centro do prato são “os cereais integrais, as leguminosas, hortícolas, frutas, frutos gordos e sementes, de preferência locais, da época e minimamente processados”.
Ainda assim, num inquérito online com duas mil respostas, a AVP confirmou que o “preço é o factor mais importante” no momento de compra de um produto vegan — e “a principal reclamação dos consumidores”.
Fomos às compras
Para fazer a experiência, pedimos a uma nutricionista que preparasse dois menus diários, com aproximadamente as mesmas calorias e macronutrientes, incluindo a proteína, mas sendo um deles 100% vegetal (1750kcal; 200g de hidratos de carbono; 90g de proteína; 70g de gordura).
Ana Isabel Monteiro já tinha feito o exercício em 2019, conta-nos a nutricionista, quando uma jovem lhe disse “que queria ser vegan, mas ainda não tinha dado esse passo porque ficava mais caro”. “Achei altamente pertinente falar disso e desmistificar que, dependendo das nossas escolhas, uma alimentação vegana não é mais cara.”
Numa ida às compras em Janeiro, a um discounter numa zona residencial da Maia, o dia com leite ao pequeno-almoço; ovo e iogurte ao lanche; peixe ao almoço e carne ao jantar totalizou 4,69 euros.
O menu com bebida de soja de manhã, seitan [alimento rico em proteínas produzido a partir do glúten do trigo] ao almoço, iogurte de soja natural ao lanche e feijão vermelho enlatado ao jantar custou 4,15 euros.
O supermercado não tinha à venda a proteína vegetal em pó que a nutricionista incluiu no plano para “equilibrar mais facilmente os macronutrientes”, mas que “é um suplemento que não tem de ser incluído” e não é consumido por muitos vegetarianos (ao contrário, por exemplo, da vitamina B12, quase obrigatória num regime 100% vegetariano, embora não seja uma carência limitada aos que se alimentam à base de plantas).
Ainda assim, se já tivéssemos a proteína por casa, ou optássemos por comprá-la noutra loja, acrescentaria 44 cêntimos à conta, chegando a um total de 4,59 euros — ainda menos dez cêntimos do que o menu diário mais convencional.
O supermercado na zona residencial da Maia foi escolhido por pertencer à marca que ficou em primeiro lugar no ranking da AVP de supermercados com maior oferta vegan em Portugal. Sempre que havia possibilidade de escolha, foram comprados os artigos mais baratos.
Em 2019, quando a nutricionista Isabel Monteiro fez o mesmo exercício, procurando online e optando pelos produtos de marca branca, embalagens familiares ou a granel, chegou a um preço igual ao cêntimo nos dois menus: 3,98 euros.
É difícil comparar estes valores quando nem o Instituto Nacional de Estatística (INE) nem o PNPAS têm estimativas do gasto médio em alimentação de um agregado familiar em Portugal. Maria João Gregório, directora do PNPAS, lembra apenas uma análise do custo médio da alimentação adequada no país, feita em 2017. Aí, uma alimentação adequada teria um custo mensal de 535 euros para um agregado familiar com dois filhos, quase 18 euros por dia para quatro pessoas, o que não difere muito dos valores apresentados nas duas pequenas experiências anteriores.
Cada vez menos optar por uma dieta vegetariana é sacrificar o prazer de comer, mas Nuno Alvim ainda classifica as opções nos supermercados em Portugal como sendo “pouco variadas e caras”. “É um mercado que se está a expandir mas comparativamente com o convencional tem uma escala de produção menor”, justifica.
A Iglo, que produz os congelados Green Cuisine, adiantou à Deco que “o investimento em investigação e desenvolvimento tecnológico, bem como as questões de eficiência, encarecem as matérias-primas e a produção”.
Os preços demovem quem pensa em comer menos carne?
Para alguém alterar um comportamento, “tem de ter oportunidade, acessibilidade e disponibilidade para o fazer”, enumera o investigador João Graça, que estuda caminhos de transição para contextos e ambientes mais sustentáveis. Estes factores misturam-se e interagem uns com os outros, por exemplo, durante uma ida às compras. As barreiras de oportunidade, como o preço, são importantes, mas não são as únicas.
A nutricionista à frente do PNPAS diz que é possível “ter uma alimentação com alimentos predominantemente de origem vegetal a um baixo custo, nomeadamente com a presença regular de leguminosas (feijão, grão, ervilhas, lentilhas), cereais e seus derivados, nomeadamente pão de mistura ou integral, fruta da época, hortícolas da época, ovos, leite e pequenas quantidades de carne ou peixe, ocasionalmente como o frango, peru ou pescado da nossa costa, como cavala ou carapau”.
A falta de literacia nutricional e literacia culinária, ou seja, como preparar refeições de base vegetal atractivas do ponto de vista sensorial, são alguns dos obstáculos que já foram identificados pelo Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável (PNPAS).
Ao longo de Janeiro, vários desafios vegetarianos convidam curiosos e cépticos a experimentar mais refeições sem produtos de origem animal, enviando por email ementas completas, receitas, listas de compras e dicas de nutricionistas. Inspirado no popular Veganuary, o Desafio Vegetariano da Aliança Animal tem uma mensagem simples: “Comida vegetariana não é para vegetarianos, é para todos, é comida”, resume Elisa Nair Ferreira. A frase em jeito de slogan é uma forma de atrair curiosos (também chamados flexitarianos), sem preconceitos ou causas e bem ciente de que a mudança colectiva só virá com alternativas que têm sabor semelhante e custam o mesmo. “Temos de tornar o vegetarianismo a coisa mais normal do mundo”, descomplica Elisa Nair Ferreira.
“A principal forma de bloqueio é motivacional”, diz o professor auxiliar na Universidade de Groningen, na Holanda. “O que não quer dizer que só tenhamos de encontrar soluções do ponto de vista da motivação. Quando conseguimos reforçar a oportunidade e aumentar a capacidade, criamos condições para que as barreiras motivacionais não sejam tão fortes.”
Portugal, onde o consumo de carne ronda os 115 quilogramas por habitante por ano, tem um “apego à carne”. “A mera discussão destas questões activa um quadro de aversão à perda”, diz, o cenário ideal para que se “instalem alguns preconceitos em relação aos produtos de origem vegetal”.
Com igual sabor, aparência e textura, a carne criada em laboratório poderá vir a ser “uma forma de dar resposta ao apego sem que isso implique danos para o ambiente e animais, mas não vai conseguir chegar a todos”.
Este é um dos resultados mais claros de todos os estudos de transição para uma alimentação sustentável em que o investigador já participou: não existe “uma solução única que vá ao encontro das necessidades e expectativas de vários perfis de consumidores”.
Garantir que as escolas e locais de trabalho oferecem refeições adequadas, “reduzir os impostos sobre os alimentos saudáveis, como as leguminosas, frutas e hortícolas”, incentivar o consumo destes alimentos junto “das pessoas mais carenciadas” e destinar incentivos para a “produção agrícola de origem vegetal” são algumas das políticas públicas prioritárias enumeradas no mais recente estudo promovido pelo Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável (PNPAS). O elevado consumo de carne vermelha, o baixo consumo de cereais integrais e a elevada ingestão de sódio “destacam-se como os três principais factores relacionados com os hábitos alimentares que mais contribuíram para a perda de anos de vida saudável”.
O consumo regular de carne foi uma conquista numa sociedade de pobreza extrema, mas actualmente a “população portuguesa apresenta um consumo de alimentos do grupo da carne, pescado e ovos que em média é cerca de duas a três vezes superior ao recomendado pela Roda dos Alimentos”. “Aumentar a presença de produtos de origem vegetal e reduzir a presença de carne e pescado nas populações que o consomem de forma excessiva diariamente, como acontece actualmente numa percentagem relevante da população portuguesa”, é um dos objectivos do PNPAS.
Maria João Gregório considera que o guia alimentar para a população portuguesa já “recomenda uma alimentação que pode ser considerada uma plant-based diet”, isto é, um padrão alimentar com alimentos predominantemente de origem vegetal. “Os grupos dos hortícolas, da fruta, das leguminosas e dos cereais, derivados e tubérculos representam cerca de 75% da Roda dos Alimentos”, descreve.
Nos Países Baixos, onde João Graça vive, o Governo quer inverter até 2050 a taxa actual de consumo de 60% de proteína animal e 40% de proteína vegetal. O investigador também defende que uma transição proteica, aumentando o consumo e cultivo de leguminosas localmente, pode ser um dos caminhos mais directos para reduzir o impacto ambiental da agricultura.
Por cá, nota, seria importante agilizar o acesso a consultas de nutrição, criar mais familiarização com refeições de base vegetal, capacitar e apoiar os agricultores para fazerem uma mudança e realocar subsídios e investimentos públicos e europeus para produções com menos emissões de gases com efeito de estufa e melhor aproveitamento dos solos e água.
Não resiste, por isso, a uma provocação final: “O preço que o consumidor paga quando vai ao supermercado para comprar produtos de origem animal não reflecte os reais custos do ponto de vista ambiental e até da saúde que a produção e consumo à escala que assistimos agora implicam”, diz. “Se os custos não fossem externalizados, o preço não seria o que é.”