Como podemos não desejar proteger os filhos da maior dor possível?
Quando não se sentem julgadas, é espantoso o que as pessoas são capazes de desabafar sobre si mesmas, e é extraordinário como se sentem livres quando aquele peso que as atormenta lhes sai de cima.
Ana,
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Ana,
Estava aqui a arrumar fotografias e encontrei uma de ti quando estavas à espera das gémeas e, não sei porquê, dei por mim a pensar como reagi de uma forma inesperada quando me anunciaste a gravidez, lembras-te? Ainda estavas longe de saber que iam ser gémeas, julgo que foi logo depois de um daqueles autotestes de gravidez (agora sempre que falamos de autoteste pensamos no raio da covid-19).
Recordo-me de ter sentido um nó na garganta, uma reacção totalmente inesperada para quem, como eu, queria tanto ser avó. Claro que fiquei feliz, mas o meu primeiro pensamento foi para ti, para tudo aquilo que terias de passar até ter o bebé no colo.
Tenho a certeza de que reagi com base na minha própria experiência de meses de enjoo e vómitos, de partos que não foram fáceis, mas também desta nossa omnipotência de mães desejosas de retirar todos os obstáculos da frente do caminho dos nossos filhos. De não os ver sofrer, o que basicamente é muito estúpido, porque equivaleria a não vos deixar viver. Mas é uma tentação...
Confesso que tive um bocadinho de medo de não ter sido suficientemente efusiva, de te ter magoado com o que poderia passar por uma certa frieza. E a verdade é que durante os primeiros tempos, senão durante a gravidez quase toda, foste tu o meu foco e não tanto os bebés.
Felizmente disseste-me, depois, que no meio dos enjoos, do mal-estar, dos meses que tiveste de passar em repouso, te soube muito bem que a minha primeira pergunta fosse invariavelmente para ti, quando muita gente parecia olhar apenas para a tua barriga. Pensando bem acho que é fácil olharmos para as mulheres grávidas quase como se fossem “barrigas de aluguer”, de tal maneira colocamos o enfoque no bebé que aí vem. E se calhar torna-se ainda mais assim quanto mais baixa a taxa de natalidade e a idade das mães, e as avós (mães e sogras) sentem que, finalmente, vem aí o neto tão desejado que há muito lhes é “devido”.
Além disso, provavelmente continua a haver muita gente que quase sente um arrepio supersticioso quando uma mulher diz que, embora queira muito aquele filho, dava tudo para “saltar” aqueles meses — como se não pudéssemos detestar os efeitos secundários de uma gravidez sem nunca, por um minuto, deixarmos de estar gratas pela vida que cresce dentro de nós.
Lembras-te de tudo isto?
Querida Mãe!
Lembro-me sim! Sim, apesar da sua hesitação inicial foi um enorme consolo ter a minha mãe focada em mim e não nos bebés (que vamos admitir que como mãe de primeira viagem, a morrer de enjoos, eram uma abstracção); e sim, também me ajudou imensamente que a mãe tivesse passado pelo mesmo mal-estar do que eu e percebesse o que eu estava a sentir. Que validasse o meu desespero, sem o interpretar como sintoma de que era/seria má mãe, de que me faltava amor ou força para estar à altura da sorte que tinha em ter engravidado sem problemas. Que aceitasse que podia ser tudo mau, e ao mesmo tempo valer completamente a pena.
Sei que, felizmente, nem todas as mulheres se sentem tão mal na gravidez, mas mesmo aquelas que não estão prostradas de enjoos e sacrificadas por vómitos constantes, passam por montanhas-russas hormonais e emocionais que as deixam mais frágeis e vulneráveis. E quanto mais honestos formos sobre os nossos sentimentos, os bons e os maus, mais fácil será navegá-los, sobretudo da primeira vez.
E agora, três gravidezes depois, e com mais experiência do que aos 22 anos, percebo — melhor do que na altura! — quando me fala desses sentimentos ambíguos de uma futura avó, perante a notícia da gravidez de alguém, de uma filha/nora em particular. Inevitavelmente ultrapassamos a ingenuidade de que tudo corre bem, e temos a cabeça cheia de histórias felizes, mas também de outras trágicas, e é quase impossível acolher só com entusiasmo.
Como podemos não desejar proteger os filhos da maior dor possível — a de perder um filho? Mas sabe o que é que eu acho? Que dizê-lo abertamente não é mórbido, nem agoirento, mas uma oportunidade de com alívio se porem as cartas na mesa. Porque do outro lado da linha está uma mãe e um pai, que também não sentem só entusiasmo. Toda a gente teme o futuro.
Os tempos mudaram, concordo, mas se há 12 anos era impossível falar tão abertamente sobre a gravidez não ser só “um sonho cor-de-rosa”, hoje continua a ser difícil dizer mais do que uma piada ou outra sobre como está a ser difícil superar aqueles nove meses, ou o pós-parto. Parece-me que muitas mulheres continuam a esconder os seus pensamentos mais negativos até do marido, continuam a disfarçar e a sofrer em silêncio.
Ainda bem que hoje encontrou essa fotografia e fez esta birra, porque não páro de me surpreender com a expressão de alívio na cara das mulheres a quem confesso que odiei estar grávida, que o enjoo incapacitante foi das coisas mais difíceis de suportar, mas que nunca pus em causa o meu amor por aqueles bebés e adoro cada momento da vida com os meus quatro filhos.
Quando não se sentem julgadas, é espantoso o que as pessoas são capazes de desabafar sobre si mesmas, e é extraordinário como se sentem livres quando aquele peso que as atormenta lhes sai de cima.
Felizmente as mães, e a minha principalmente, está disposta a esta abertura. E em alturas vulneráveis nada, mas nada, bate o colo da nossa mãe.
No Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Mas, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram.