Um mar de interrogações depois das epidemias
A vida das pessoas que sofrem as sequelas ou os traumas da covid-19 continua após ter sido declarado o seu fim. O que tem acontecido é que são esquecidas.
Quem determina o fim da pandemia? É a Organização Mundial da Saúde (OMS) que deverá ditar o fim da emergência de saúde pública internacional, que emitiu a 30 de Janeiro de 2020. “Pode haver um falso conforto em pensar que a covid-19 se torne endémica. Mas, ao fazer parte das nossas vidas diárias, traz também as mortes e a debilitante covid prolongada. Isso seria obviamente uma fase diferente, mas não um fim em si”, diz Dora Vargha, historiadora da medicina da Universidade de Exeter (Reino Unido), envolvida num projecto sobre as narrativas do fim das epidemias.
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Quem determina o fim da pandemia? É a Organização Mundial da Saúde (OMS) que deverá ditar o fim da emergência de saúde pública internacional, que emitiu a 30 de Janeiro de 2020. “Pode haver um falso conforto em pensar que a covid-19 se torne endémica. Mas, ao fazer parte das nossas vidas diárias, traz também as mortes e a debilitante covid prolongada. Isso seria obviamente uma fase diferente, mas não um fim em si”, diz Dora Vargha, historiadora da medicina da Universidade de Exeter (Reino Unido), envolvida num projecto sobre as narrativas do fim das epidemias.
Porém, a declaração do fim da pandemia deixa-nos com um mar de interrogações. “Deixará de haver fundos para o tratamento de doentes e para medidas de prevenção? As pessoas que vivem com as consequências a longo prazo da covid-19 vão tornar-se invisíveis? A doença será relegada para algumas partes desprivilegiadas da sociedade, perdendo importância?”, interroga Dora Vargha.
“Os primeiros estudos que a OMS fez sobre o que acontecia com as pessoas após as epidemias foram feitos depois da epidemia de ébola de 2016-2016. Perceberam que os processos de estigmatização continuavam. Como o ébola era muito relacionado com o pessoal médico — porque é na última parte da doença, quando as pessoas já estão muito mal, que o vírus se transmite —, este era estigmatizado e tinha um altíssimo nível de burnout”, conta Jorge Varanda, professor de antropologia da saúde no Departamento de Ciências da Vida da Universidade de Coimbra.
“O que se vê é que quem é afectado terá de lidar com os problemas por si. É o que acontece quando alguém é atingido por um desastre: há a acção humanitária no momento, mas normalmente depois as pessoas esquecem. Ou as vítimas de terrorismo, nunca fazemos um seguimento”, acrescenta Jorge Varanda.
“No caso do ébola, quando foi declarado o fim da emergência internacional, as organizações não-governamentais saíram da África Ocidental, levando os seus fundos e recursos, enquanto os países se debatiam ainda com novos surtos e com as consequências da doença. Quando a emergência do vírus Zika ‘terminou’, também a atenção e os recursos deixaram de chegar às pessoas (na sua maioria mulheres) que ficaram a cuidar de crianças com grandes deficiências”, acrescenta Dora Vargha. “É por isso que estou convicta de que precisamos de repensar como definimos uma epidemia, temos de ir além da biologia. As epidemias são fenómenos sociais e fenómenos biológicos.”
A investigadora conta que começou a pensar sobre os fins das epidemias quando falou com sobreviventes da poliomielite que, quase 50 anos depois de ter acabado a epidemia, se chamavam a si próprios “dinossauros”. “'Somos uma estirpe que está a morrer, não haverá mais como nós quando o vírus desaparecer’, diziam. É por isso que considero que temos de repensar fortemente onde traçamos a linha de separação entre uma pandemia e uma epidemia para lá do aspecto biológico”, relata. “Os posters da campanha de erradicação dizem-nos que ‘estamos muito próximos de acabar com a poliomielite’”, mas há centenas de milhares de pessoas no mundo que vivem ainda com esta doença. Com o que é que estamos a acabar? Com o vírus? Com a doença? Como podemos pensar no fim de uma doença se continua a ser realidade para tantas pessoas?”