Quantas pessoas morreram realmente de covid-19? Há várias maneiras de contar
Oficialmente, a pandemia produziu 5,5 milhões de óbitos. Mas este número é, quase de certeza, uma subestimativa. Há várias tentativas para contar de forma mais precisa a mortalidade devido à infecção pelo vírus SARS-CoV-2, que usam desde satélites para contar sepulturas até à inteligência artificial.
Qual é a mortalidade real devido à covid-19? Os números oficiais da Organização Mundial da Saúde (OMS) dizem-nos que já ultrapassou os 5,5 milhões, mas é quase certo que seja uma subestimativa. O número de mortes em excesso a nível global pode ser o dobro, ou até quatro vezes mais – dependendo dos resultados de várias iniciativas lançadas para calcular as vítimas da infecção pelo vírus SARS-CoV-2.
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Qual é a mortalidade real devido à covid-19? Os números oficiais da Organização Mundial da Saúde (OMS) dizem-nos que já ultrapassou os 5,5 milhões, mas é quase certo que seja uma subestimativa. O número de mortes em excesso a nível global pode ser o dobro, ou até quatro vezes mais – dependendo dos resultados de várias iniciativas lançadas para calcular as vítimas da infecção pelo vírus SARS-CoV-2.
Mesmo países que podem parecer semelhantes, por exemplo os Países Baixos e a Bélgica, podem ter formas diferentes de registar as mortes por covid-19. No início da pandemia, os Países Baixos só contabilizavam quem morria no hospital, depois de ter feito um teste positivo para o vírus SARS-CoV-2. Mas a vizinha Bélgica contabilizava também os óbitos que aconteciam na comunidade e toda a gente que morria depois de ter exibido sintomas de covid-19, mesmo que a doença não tivesse sido diagnosticada.
Em Portugal, morreram mais 11.118 pessoas em 2020 do que no ano anterior, segundo um relatório do Instituto Nacional de Estatística. Por cada cem mortos causados pela covid-19 em 2020, morreram em Portugal mais 46 pessoas por motivos que podem ser considerados efeitos indirectos do combate ao vírus, como atrasos nos diagnósticos ou tratamentos. A estimativa foi feita por investigadores da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL), tendo por base os dados da mortalidade do último ano.
O instrumento estatístico do excesso de mortalidade é usado pelos epidemiologistas para fazer uma avaliação rápida do impacto de uma pandemia, ou para fazer comparações entre países, mesmo que as estatísticas de cada país não sejam muito pormenorizadas, ou sejam muito diversas. Embora tenha o problema de não distinguir quem morreu de covid-19, por exemplo, das pessoas que morreram porque não tiveram acesso a cuidados de saúde para outras doenças. Ou de as análises não corrigirem efeitos como o da estrutura da população.
Foi o que descobriu a equipa do especialista em estatística Giacomo De Nicola, da Universidade Ludwig Maximilian, em Munique, quando os cientistas quiseram calcular o excesso de mortalidade causado pela pandemia na Alemanha: descobriram que comparar as mortes com a média de mortalidade dos anos interiores subestimava o número de óbitos esperados – o que levava a calcular um número mais elevado de mortes em excesso. Isto acontecia porque havia um aumento na mortalidade a nível nacional, provocado pelo aumento de morte de pessoas (por outras causas) com mais de 80 anos.
Quando este factor foi corrigido, a equipa encontrou uma diferença importante em relação a dados que tinham sido divulgados oficialmente, de 5% mais mortes em 2020 comparando com 2019. O valor que encontraram foi apenas de 1% mais mortes. Este é apenas um exemplo de como é necessário ter em conta a estrutura de uma população, para que os cálculos sejam aproximados da realidade. “Dada a ausência de um método aceite por todos para o ajuste das idades, tenho a certeza de que este problema acontece em muitos outros países”, disse Giacomo De Nicola à revista Nature, que num artigo noticioso faz uma resenha de várias iniciativas para tentar chegar a um retrato da mortalidade causada pela covid-19 a nível global mais próximo da realidade.
De 6,5 milhões a...
Os métodos para tentar fazer um cálculo mais correcto da mortalidade global causada pela covid-19 vão desde a inteligência artificial até ao uso de imagens de satélite para contar campas de cemitério, e participam instituições científicas e empresas de media, relata a revista. Com resultados mais ou menos satisfatórios.
Ariel Karlinsky, um economista da Universidade Hebraica de Jerusalém (Israel), e Dmitry Kobak, um cientista de dados da Universidade de Tübingen (Alemanha), levaram em conta essas correcções aos dados e desde Janeiro de 2021 que têm uma base de dados online actualizada frequentemente de mortalidade por todas as causas antes e depois da pandemia (2015-2021), usando tantas fontes e locais quanto possível. Estão representados 116 países e territórios na Base de Dados da Mortalidade Mundial, com a maior parte da informação proveniente de governos e outras fontes oficiais. Tentam relacionar estes dados com conflitos armados, ondas de calor e desastres naturais – o que os levou a estimar uma perda de 4000 vidas na guerra de 2020 em Nagorno-Karabakh.
Em vários casos, as estimativas de mortes em excesso de Karlinsky e Kobak resultam bastante diferentes dos números oficiais de óbitos por covid-19 divulgados pelos governos, conta a Nature. A Rússia, por exemplo, reportou cerca de 300 mil mortes até ao fim de 2021, mas provavelmente nessa altura teria mais de um milhão de mortes em excesso, segundo a base de dados.
Os números oficiais dizem que houve 4,1 milhões de mortes devido à covid-19 nos 116 países cobertos na base de dados. Mas quando se usa a ferramenta do excesso de mortalidade, a equipa calcula que as mortes sejam 1,6 vezes mais, cerca de 6,5 milhões. Em alguns países a situação é bem mais grave: no México, estimam que um terço de todas as mortes desde o início da pandemia seja atribuível à covid-19.
...a um máximo de 22 milhões
Uma outra tentativa de fazer uma estimativa global é a da revista britânica The Economist, que usa um programa de inteligência artificial para identificar mais de uma centena de indicadores que parecem estar relacionados com o excesso de mortes em mais de 80 países, como latitude geográfica, grau de censura da Internet e o número de anos que o país tem de regime democrático, explica a Nature. O algoritmo estima que haja entre 12 milhões e 22 milhões de mortes em excesso a nível global – o que pode ser muito mais do que o que dizem os números oficiais, mas tem um grande grau de incerteza.
Mas os resultados para a Índia, por exemplo – cinco milhões de mortes, dez vezes mais do que o valor oficial de 500 mil –, são consistentes com os resultados de inquéritos feitos por cientistas que usaram amostras representativas de famílias indianas e dados de mortalidade a um nível subnacional. Estes chegaram à conclusão de que entre três a cinco milhões de pessoas podem ter morrido por causa da covid-19 na Índia. Os resultados da Economist apontam para um milhão a 7,5 milhões de mortes naquele país.
Para a China, o modelo da revista britânica estima 750 mil mortes – bem diferente das 4600 admitidas pelo regime de Pequim. Mas a incerteza é avassaladora: vai de menos 200 mil mortes do que seria de esperar até mais 1,9 milhões de mortes.
O modelo da Economist indica que as mortes em excesso nos países de rendimentos mais elevados podem ser um terço mais que o reportado, mas que nos países mais pobres essa diferença pode ser 20 vezes maior – embora a incerteza se mantenha.
Mas há críticos deste modelo, com um grau tão grande de incerteza, como Gordon Shotwell, um cientista de dados de Halifax (Canadá) que escreveu no seu blogue que o modelo da Economist é irresponsável. “Modelos como este têm o efeito de dar um verniz de objectividade e pensamento aparentemente científico ao que é pura e simplesmente opinião”, escreveu. “Não se aprende nada a treinar um algoritmo em países ricos, com grande esperança de vida, e a aplica-lo em países pobres, com uma reduzida esperança de vida”, disse Shotwell à Nature.
Sondre Ulvund Solstad, o cientista de dados sueco que lidera a equipa que produz o modelo da Economist, discorda. “Acho que é melhor dar um número incerto do que aceitar um número que nos dão como certo mas que é claramente errado”, disse à Nature.
Satélites focados em cemitérios
Mervat Alhaffar, uma investigadora em saúde pública da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, usou imagens de satélite de 11 cemitérios da província de Aden, no Iémen, para contar sepulturas em cemitérios. O estudo sugeriu que os enterros aumentaram semanalmente 230% entre Abril e Setembro de 2020. A partir daí estimou o excesso de mortalidade para a região. Outra equipa da mesma instituição aplicou este método para contar novas sepulturas em Mogadíscio, na Somália, estimando que as mortes em excesso em Janeiro e Setembro de 2020 foram entre 3200 e 11.800.
Esta técnica é útil, mas não pode ser aplicada em qualquer lado. “É preciso ter uma relação com as pessoas no terreno, compreender as práticas funerárias e compreender as imagens”, disse à Nature. E pode ser difícil estabelecer estas relações, sobretudo em zonas de conflito, como são estas.
O que estes exemplos mostram é que muitos países ainda não recolhem dados de qualidade sobre nascimentos, mortes e outras estatísticas vitais, disse à Nature Andrew Noymer, um demógrafo da Universidade da Califórnia em Irvine (EUA). “Os demógrafos têm sido parte do problema”, diz.
Isto quer dizer que pode haver sempre dúvidas sobre a verdadeira mortalidade da covid-19. “Ainda não sabemos quantas pessoas morreram na pandemia gripe de 1918, mas sempre achei que conseguiríamos saber bem quantas pessoas iriam morrer na próxima pandemia, porque vivemos no mundo moderno. Mas realmente não, e isso é um pouco triste para mim, como demógrafo”, comentou Noymer.