Aumentar a imunidade contra a covid. “Acho que neste momento deveríamos abrir mais a vacinação”
A ex-ministra da Saúde e agora presidente da Cruz Vermelha Portuguesa, Ana Jorge, defende que a dose de reforço da vacina deveria ser agora aberta a pessoas com menos de 40 anos para aumentar a imunidade da população. Em entrevista ao PÚBLICO/Rádio Renascença fala do aumento dos pedidos de ajuda de famílias que chegam à instituição que lidera.
Está há cerca de dois meses à frente da Cruz Vermelha, instituição que está perto de completar 157 anos de existência. Ana Jorge, médica pediatra e ex-ministra da Saúde de um governo PS, lança um olhar sobre a pandemia e as próximas eleições. Dá nota positiva à resposta à covid-19, embora considere que tenham existido algumas falhas. Sobre os profissionais de saúde, afirma que é preciso que sejam reconhecidos.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Está há cerca de dois meses à frente da Cruz Vermelha, instituição que está perto de completar 157 anos de existência. Ana Jorge, médica pediatra e ex-ministra da Saúde de um governo PS, lança um olhar sobre a pandemia e as próximas eleições. Dá nota positiva à resposta à covid-19, embora considere que tenham existido algumas falhas. Sobre os profissionais de saúde, afirma que é preciso que sejam reconhecidos.
A Cruz Vermelha recebeu mais pedidos de apoio por parte de famílias que terão perdido rendimentos por causa da pandemia?
Houve um aumento franco de apoio de necessidades, diria em dois aspectos. Apoio pecuniário quando havia contas para pagar, nomeadamente rendas ou contas da água ou da luz, e também os apoios do ponto de vista alimentar ou outros bens de primeira necessidade. Houve aumento da capacidade de conseguirmos apoios para canalizar para quem mais necessita. Nesse aspecto, temos programas importantes. Um é o programa Cartão Dá, que atribui a algumas famílias um cartão com um valor pecuniário que as famílias podem gerir.
Mas apoiaram mais pessoas? Alguma ideia em termos percentuais?
Tenho valores do Cartão Dá, são certa de 1600 pessoas. São muitas, mais do que havia porque o cartão tem vindo a aumentar. Mas não posso dizer qual é a percentagem. Há de facto este número que é suficientemente elevado e há cerca de 70 mil famílias apoiadas em 2020. Estamos a falar no país inteiro. Eram cerca de 50 mil nos últimos anos.
Há dinheiro para todos esses projectos? Que situação é que encontrou?
O que encontrei nunca é suficiente, porque temos sempre outras necessidades que aparecem. Uma das preocupações da Cruz Vermelha é a mobilização da sociedade civil de uma forma global para conseguimos apoios financeiros para poder sustentar e transformar em apoios das diferentes naturezas. O que tem depois toda uma componente de gestão muito grande, porque esta variedade tão grande, quer de programas quer dos apoios, implica uma gestão profissionalizada que é importante garantir.
A Cruz Vermelha garante essa profissionalização da gestão?
Essa é uma das preocupações e um dos desafios desta nova direcção. A Cruz Vermelha tem profissionais e tem voluntariado. Mas os voluntários têm de ser obviamente integrados numa rede de profissionais e temos de profissionalizar mais ainda a própria gestão para garantir todo este processo.
Mas isto não significa que havia má gestão anterior?
Não. Penso que a gestão anterior foi bastante transparente. Agora, os profissionais da Cruz Vermelha precisam de ser cuidados. Precisamos de olhar para eles, regularizar por exemplo uma carreira. Hoje em dia sabe-se que os profissionais precisam de ser reconhecidos, precisam de formação, de melhores tecnologias e de um vencimento adequado. Esse é de facto um desafio.
Recentemente foram chamados para ajudar no aeroporto quando houve um aumento de pessoas a precisarem de fazer teste. Onde têm participado mais?
Temos um centro de testagem permanente que fica no Lumiar, com um movimento oscilante. Agora voltou a ter mais. Fomos incluídos agora [no protocolo com o Estado] nos quatro testes que se podem fazer gratuitos.
A Cruz Vermelha passou a fazer parte do protocolo com o Estado.
Exactamente. E estamos neste momento praticamente com todo o processo terminado - isto é um bocadinho kafkiano - de podermos fazer PCR para dentro do sistema. Podia ser feito privadamente ou através dos seguros ou de outro mecanismo, mas não do Serviço Nacional de Saúde, sendo de facto uma grande necessidade de resposta imediata.
Falou-se muito na testagem das crianças, nesta fase do segundo período. Houve algum contacto de escolas de Lisboa com a Cruz Vermelha para avançar com essa testagem?
Não houve nenhum. Fizemos inclusive uma proposta à Associação Nacional de Municípios, para dizer que estamos disponíveis, se quiserem, para o protocolo. Foi dito que cada câmara poderia resolver este processo e resolveria com as farmácias.
Como ministra da Saúde também atravessou uma pandemia, a gripe A, com uma dimensão diferente desta. Recorrendo à sua experiência, porque também houve muita incerteza naquela altura, é possível fazer melhor do que estamos a fazer agora para responder a esta pandemia?
Penso que muito melhor não era possível. As pandemias não são previsíveis e nunca podemos ter respostas para tudo quando a pandemia surge. Temos de ter capacidade organizativa, e houve planos de contingência bem definidos. E saber o que é preciso em cada fase do plano. Não podemos ter, por exemplo, camas de cuidados intensivos, mil camas, à espera que chegue uma pandemia, quando não sabemos se vai ser necessário ou não. Vamos ter de ir adaptando, que foi o que foi feito.
Dá uma nota positiva à forma como foi dada resposta a esta pandemia.
Sim. Na primeira fase respondemos bem. E respondemos bem porque tínhamos os serviços de saúde pública e a pandemia controla-se na comunidade e não nos hospitais. O que era importante era ainda aumentar mais a capacidade de reforço dos serviços da comunidade, nomeadamente a área da saúde pública. Depois houve uma fase muita perturbadora quando houve [maior] necessidade de cuidados de saúde e o que acho mais preocupante foi aquilo que aconteceu aos doentes ‘não covid’. Para voltar à questão, nós fomos capazes de responder de uma forma geral bem, com algumas falhas e algumas coisas que correram menos bem.
Que falhas aponta?
Sou um bocadinho crítica sobre a forma como algumas notícias aparecem como a desgraça completa, quando não corresponde à realidade. Vou dar sempre um exemplo que aconteceu no ano passado, em que houve um problema com o oxigénio no Amadora-Sintra. Nunca houve problema nenhum com falta de oxigénio, o que houve foi o tomar de uma série de medidas para evitar que houvesse um problema. E aquilo foi dado como uma notícia negativa e isto é muito grave.
Mas isso não resulta dos problemas de comunicação que têm envolvido toda a comunicação da pandemia? Mesmo por parte das entidades governamentais?
Acho que houve de vez em quando informação a mais sem se ter o conhecimento completo. Nem sempre a altura em que se dá a informação é a altura mais adequada. Às vezes é preciso diferir um bocadinho para quando se dá a informação termos mais bases sólidas do ponto de vista científico para não voltar para trás.
Como pediatra é a favor da vacina?
Sou a favor da vacina neste momento e fui quase desde sempre. Acho que aquilo que temos de fazer é aumentar a população vacinada, e as crianças são um grupo grande, para que haja menos capacidade de contágio. Não para prevenir a doença grave que é rara na criança, mas que existe, mas porque se tiver uma população mais vacinada, a probabilidade de o vírus circular é menor.
E em relação ao resto da população, não faria sentido fazer casa aberta para toda a gente com mais de 18 anos?
Acho que neste momento deveríamos abrir mais a vacinação. É evidente que temos de ir aos grupos de risco para organizar, mas deixar uma margem, abrir maior possibilidade das pessoas se irem vacinar por iniciativa. Porque há grupos de pessoas com menos idade do que aqueles que estão na lista para entrar agora na terceira dose que gostariam de ir e estariam disponíveis. Se fizerem isso, vamos aumentar a capacidade de imunidade da população e contribuir para o controlo da disseminação do vírus.
Houve alguma incapacidade para reforçar os recursos humanos no momento certo, nomeadamente a saúde pública?
Para reforçar a saúde pública é preciso que existam médicos de saúde pública e outros profissionais que também trabalham em saúde pública, nomeadamente os enfermeiros com esta especialidade. É um problema complexo porque há poucos. É preciso fazer cálculos e reforçar. Os outros profissionais, que colaboraram, houve alguma lentidão na sua agilização. Isto tem a ver também com a capacidade de contratar pessoas.
Em relação aos médicos de família, ficam ocupados com questões burocráticas e acabam por não dar resposta aos doentes que procuram os centros de saúde. Isto não poderia ter sido feito de outra forma?
Os problemas dos médicos de família são mais latos. Há um número reduzido de pessoas disponíveis para trabalhar no sistema público, umas porque se reformaram, outros porque emigraram ou estão a trabalhar no privado. Há uma carência absoluta no sistema público. [Devia] ter sido feito o repensar das carreiras médicas, quer de outros profissionais da saúde, a sua valorização e o seu reconhecimento. Isso teria de ter sido feito paralelamente a este processo. Era a única maneira de lhes dar um sinal de reconhecimento e não deixar haver mais fugas de profissionais. Isso teria sido muito significativo. Depois o modelo de organização do sistema, teria também de se aproveitar esta oportunidade para ser feito um bocadinho diferente. Ter mais enfermeiros nos cuidados de saúde primários e algum trabalho feito em equipa que pudesse ser partilhado. Por outro lado, os médicos não podem ter medo da covid. Os médicos, e aqui ponho-me como médica, precisam de ver os doentes e ver pessoalmente. As consultas telefónicas não chegam.
Mas os médicos dizem que não têm tempo.
Quem está a gerir as instituições e os serviços de saúde tem de pesar uma coisa e outra para poder não descurar as pessoas que precisam de alguma vigilância. Porque uma grande parte dos doentes com covid que estão em casa não têm doença grave, têm uma doença banal.
Estamos em campanha eleitoral e esta é uma promessa de vários partidos. Algum dia vai ser possível dar um médico de família a todos os portugueses?
Acho que é possível. Nós estivemos quase. Quando estive no governo houve um período que tínhamos talvez 500 mil pessoas na altura sem médico de família. Em determinada altura houve uma mudança para a valorização da medicina geral e familiar, e foi certa, só que não foi mantida essa chama. Esta é a minha leitura do processo neste momento. É necessário possibilitar que mais médicos possam, quando têm de fazer a escolha da especialidade, fazer esta opção. Para isso, tem de ser reconhecida sob todos os pontos de vista, quer profissional quer salarial. Tem de haver um agilizar da consultadoria que é preciso para algumas especialidades que são hospitalares, em que os doentes vão ao especialista e depois voltam ao seu médico de família. Se este processo for mais agilizado, conseguimos ter mais resposta na medicina geral e familiar. Por outro lado, provavelmente está na altura, não pondo em causa o modelo de organização em USF que acho que foi uma boa aposta, de olhar para dentro e ver como é que aos dias de hoje isto pode ser diferente e melhorado.
E em termos hospitalares? Também temos assistido a uma saída de profissionais de saúde.
Tem a ver com a dignificação da profissão e com as condições de trabalho.
Das propostas eleitorais que já ouviu, há alguma em que ache que podia resolver esse problema?
Sou muito pelo serviço público, não anti serviço privado. Mas o serviço público tem de ser forte, com toda a capacidade de diferenciação, de reconhecer os profissionais e ser um serviço para garantir que há saúde para todos. Depois, pode fazer [acordos] com algum sector privado em algumas áreas como já faz e que provavelmente tem de manter. E hoje há possibilidade de ser bem regulado, contratualizado e acompanhado. Não há que ter medo do sector privado, mas não pode ser um sector privado que viva à custa do sistema público.
O PS tem pedido maioria absoluta. Deve-se responder a esse pedido de António Costa?
Acho uma pergunta difícil para responder nesta fase do campeonato. Por natureza e por definição a Cruz Vermelha terá que ser muito independente...
… mas a Drª. Ana Jorge?
Pessoalmente tenho algumas dificuldades com as maiorias absolutas. Penso que seria por um lado facilitador de alguns processos, pelo menos uma maioria mais significativa. Era importante que houvesse discussão e que fossem alargados os consensos. O que o secretário-geral do PS pede em relação à maioria absoluta teria a ver também com este reforço de algum sector público, nomeadamente da área da saúde e do social, porque somos um estado social, dando atenção às fragilidades das pessoas e ao bem-estar social. Seria importante que isso se concretizasse, as se concretizasse à séria.
E Marta Temido como ministra da saúde se o PS ganhar e formar governo?
Não tenho nada contra a ministra Marta Temido.