A Comissão Europeia traiu o processo ao incluir o gás e o nuclear na taxonomia verde, diz especialista
Tal como está, o documento viola o espírito e a letra do Acordo de Paris, porque incentiva mais investimento em energias fósseis - e desvia-o de projectos de energias alternativas, que contribuam para a transição energética, diz membro de grupo de peritos que aconselhou a Comissão.
A inclusão pela Comissão Europeia do gás natural e do nuclear na chamada taxonomia verde, considerando-os energias de transição para efeitos de financiamento, que foi apresentada aos Estados-membros ao início da noite de 31 de Dezembro de 2021, “é uma traição ao processo” de diálogo técnico e científico dos últimos quatro anos, considerou, ao PÚBLICO, Sandrine Dixson-Declève, co-presidente da organização de reflexão Clube de Roma e membro da Plataforma de Finanças Sustentáveis da União Europeia, um conselho consultivo que ajudou a UE a desenvolver a proposta da taxonomia.
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A inclusão pela Comissão Europeia do gás natural e do nuclear na chamada taxonomia verde, considerando-os energias de transição para efeitos de financiamento, que foi apresentada aos Estados-membros ao início da noite de 31 de Dezembro de 2021, “é uma traição ao processo” de diálogo técnico e científico dos últimos quatro anos, considerou, ao PÚBLICO, Sandrine Dixson-Declève, co-presidente da organização de reflexão Clube de Roma e membro da Plataforma de Finanças Sustentáveis da União Europeia, um conselho consultivo que ajudou a UE a desenvolver a proposta da taxonomia.
O documento apresentado pela Comissão nas últimas horas de 2021 “desrespeita quatro anos de diálogo rigoroso, científico e análise financeira das partes interessadas, que pretendia apoiar a mobilização de capital para alternativas económicas de baixo carbono verdadeiramente sustentáveis. Tal como está proposto, o acto delegado complementar pode fazer com que a taxonomia deixe de ser uma ferramenta útil para financiar actividades sustentáveis a longo prazo, como energia eólica e solar, e se acabe por dificultar a transformação da economia”, diz Dixson-Declève, numa declaração escrita.
Tratando-se de um acto delegado complementar, a proposta do executivo comunitário não tem de ser concertada nem votada pelos co-legisladores do Parlamento Europeu e do Conselho da UE para ser adoptada. Mas há negociações durante a sua elaboração e também após a sua apresentação. Com o envio do texto aos Estados-membros, iniciou-se o prazo previsto para consultas, e envolve um grupo de especialistas dos Estados-membros e da Plataforma de Finanças Sustentáveis, onde se inclui Dixson-Declève.
“Durante este período das festas toda a gente tem dificuldades. Outros membros da plataforma, tal como eu, pensam que a Comissão devia ter-nos dado tempo para fazer uma avaliação técnica e científica adequada. Os membros da Plataforma que estão disponíveis estão a fazer o possível para apresentar algo até dia 21, o prazo que nos foi comunicado, embora estejamos muito desapontados com a forma como a Comissão lidou com este processo”, disse Dixson-Declève ao PÚBLICO, por email.
“Fica posto em causa o papel da consulta da Comissão Europeia a peritos independentes e o apelo a decisões com base na ciência. O grupo independente de peritos recomendou que não fosse incluído o gás e o nuclear na taxonomia por razões científicas e técnicas válidas, mas a Comissão Europeia deixou-se capturar pela politização e interesses nacionais dos Estados-membros”, afirma Dixson-Declève. “Uma taxonomia que classifica o gás natural e o nuclear como verdes abre a porta ao ‘greenwashing’, que era o que a Comissão inicialmente queria evitar. E vai desviar o investimento das energias renováveis”, conclui.
Ao classificar a construção de novas centrais a gás como “verdes”, a taxonomia acabará por aumentar a procura por combustíveis fósseis, diz a responsável. Isto é uma violação do espírito, se não da letra, dos objectivos do Acordo de Paris? “Sim, especialmente porque a Agência Internacional de Energia declarou que não deve haver novos investimentos em energia fóssil após 2030 e sabemos que as emissões de a partir do gás natural são um problema crescente, e que o metano tem 80 vezes mais capacidade de aquecimento da atmosfera que o dióxido de carbono durante os primeiros 20 anos”, declarou a especialista em políticas de transição energética.
Neste primeiro semestre, França, um país com um forte lobby nuclear, assume a presidência do Conselho da União Europeia: isto pode influenciar o processo de aprovação da taxonomia verde? “Normalmente, o país que assume a presidência deve manter-se neutro em assuntos fundamentais, mesmo que sejam do seu interesse nacional e trabalhar para que haja um acordo. Espero que França se mantenha fiel a esse espírito, para termos os resultados mais ambiciosos da taxonomia e de toda a política de sustentabilidade e climática. Mas sabemos que França está por trás de o nuclear ter sido incluído na taxonomia, por isso não vou ficar sentada à espera.”