Jerónimo atribui não de Costa a nova “geringonça” a “uma noite mal dormida”

O líder do PCP ficou “surpreendido” com a recente “crispação” de Costa no debate televisivo. Mas não leva a sério quando o socialista diz não a uma futura “geringonça”. “Esta coisa dos irrevogáveis vale tanto como coisa nenhuma.”

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Jerónimo de Sousa é secretário-geral do PCP desde 2004 Daniel Rocha

O secretário-geral do PCP, Jerónimo de Sousa, não se arrepende de ter chumbado o último Orçamento do Estado e mantém a porta aberta ao diálogo com o PS após as legislativas de dia 30. Em entrevista, alerta ainda para os perigos de uma maioria absoluta, o risco de “impunidade”, e critica o “tacticismo” de Costa.

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O secretário-geral do PCP, Jerónimo de Sousa, não se arrepende de ter chumbado o último Orçamento do Estado e mantém a porta aberta ao diálogo com o PS após as legislativas de dia 30. Em entrevista, alerta ainda para os perigos de uma maioria absoluta, o risco de “impunidade”, e critica o “tacticismo” de Costa.

Esta semana, o secretário-geral do PS disse que a solução política de governo com o PCP e BE não lhe dá confiança, recusou mesmo a “geringonça”. Como responde a esta falta de confiança do PS?
Num momento importante de diálogo entre nós, PS e PCP, no Orçamento do Estado verificou-se que alguma coisa tinha mudado para pior, ou seja, um fechar de portas relativamente a três questões centrais (valorização dos salários, reforço do Serviço Nacional de Saúde e revogação da caducidade colectiva) e direccionou o seu posicionamento para as eleições antecipadas.

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Foi um duro golpe ouvir o que ouviu da parte de António Costa, que havia falta de confiança?
Tenho a certeza que António Costa tem a consciência de que da parte do PCP sempre houve uma grande coerência, determinação e disponibilidade para contribuir para novos avanços.

Agora a proposta do PS é de 900 euros de salário mínimo nacional em 2026.
Pois, veja lá! É uma forma um bocado abstrusa e torcida de empurrar com a barriga – fazer o anúncio e empurrar lá para daqui a não sei quantos anos. Não é muito credível. Naturalmente que daqui a três anos a situação será diferente.

Como vê a sugestão do programa eleitoral do PS de quatro dias semanais de trabalho?
Pode ser uma armadilha: reduzir o tempo de trabalho reduzindo os salários. Inevitavelmente pode aumentar a precariedade neste quadro. O mesmo PS que propõe os quatro dias é o mesmo que votou contra a proposta do PCP de redução do horário de trabalho para as 35 horas. Em que é que ficamos?

Voltando à convergência ou à falta dela. Acha que as palavras de António Costa de que não pode haver “geringonça”, porque há falta de confiança podem ser irrevogáveis?
Em relação a esse carácter de irrevogável, aquilo que gostaria de afirmar é que o PCP sempre decidiu de uma forma autónoma, independente. Criou-se uma falsa ideia de um governo de maioria, mas o que houve foram convergências num quadro bilateral.

Isso foi o passado. Para o futuro, o PCP já mostrou disponibilidade para dialogar e para conversar.
Para convergir.

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Não achou que Costa fechou completamente a porta?
Já andamos aqui há muitos anos e sabemos que esta coisa dos irrevogáveis vale tanto como coisa nenhuma. Estamos empenhados em ser promotores dessa convergência num quadro de relações bilaterais.

Costa tem cada vez menos medo de usar a expressão “maioria absoluta”. Acha tal cenário possível ou acha um delírio?
Tem havido uma evolução. Primeiro, era a ideia de que era preciso reforçar a maioria, depois era a maioria estável, duradoura, depois a maioria mais um, estou a citar António Costa e outros altos dirigentes do PS. Aquela tese de que o PCP era o culpado [pelas eleições antecipadas] durou umas horas de almoço. De facto, o PS estava determinado a eleições.

Mas é um delírio ou pode acontecer de facto?
Não estou na cabeça dos eleitores, mas tendo em conta a experiência histórica, conheci várias maiorias absolutas e foram sempre um desastre para o país. Os portugueses ficaram muito escaldados com as maiorias absolutas. Deram sempre para o torto.

Ficaria surpreendido, se houvesse maioria absoluta?
Sim. A ser alcançada, seria sempre uma má solução, tendo em conta os problemas do país. As maiorias absolutas não são para resolver os problemas do país, é resolver à sua maneira com a força toda de uma maioria. Dá uma certa impunidade, cria sentimentos de quero, posso e mando e não é saudável para a democracia.

António Costa disse no primeiro debate na RTP que quer uma maioria, porque o governo não pode estar dependente “dos humores, das jogadas políticas, da movimentação táctica de cada um dos partidos”. Como é que responde a isto, porque obviamente o secretário-geral do PS estava a falar do PCP também?
Vindo de quem vem, mais vale ter alguma cautela em relação a essas afirmações.

Pensa que houve mais tacticismo por parte do PS?
Sim, claro.

A 30 de Janeiro, será capaz de dizer de novo a frase que disse em 2015: “O PS só não forma governo se não quiser”?
Existe disponibilidade para convergência em relação a coisas concretas. Não estamos animados de nenhum tacticismo. O reforço da CDU é a questão principal por que nos batemos. Queremos pôr o resultado da CDU ao serviço do país e resolver problemas estruturais.

Então, se a esquerda for maioritária no hemiciclo, mesmo que o PSD seja o partido mais votado, ainda poderá vir a haver um volte-face durante a legislatura com o derrube de um governo de direita?
Em primeiro lugar, não é deitar abaixo por deitar abaixo. Temos um programa e um compromisso primeiro com os trabalhadores e com o povo. Temos de ver as soluções em concreto, saber para quê.

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Acha que um governo de Rui Rio pode não ser tão perigoso como era o de Passos Coelho?
Mais assim ou mais ao lado, os governos do PSD no essencial corresponderam a um retrocesso. Há indícios agora que nos preocupam: o objectivo de rever a Constituição a pensar em adulterar as leis eleitorais, para reduzir o número de deputados; a tentativa clara de ingerência e governamentalização da Justiça para servir outros interesses; a concepção de uma Segurança Social em que não se pode dar tudo a todos significaria o fim do carácter universal e solidário da Segurança Social.

Se o PSD ganhar com maioria relativa, mas a esquerda for maioritária, já sabemos que Costa se demite. Aí haverá novo líder do PS. Com outra personalidade, o PCP admite que seria mais fácil negociar? Nomeadamente, Pedro Nuno Santos?
Seria pouco sensato imiscuir-nos em questões de liderança do PS.

Costa mostrou-se muito intransigente consigo no frente-a-frente e culpou o PCP pela crise e pelas eleições antecipadas. Será que com outra pessoa seria mais fácil?
Pessoalmente, estranhei aquela crispação toda que se verificou antes, durante e depois do debate vindo de alguém que reconheceu muitas vezes a forma como o PCP esteve nesta fase da vida política.

Pensa que é uma questão da própria sobrevivência da parte do líder do PS?
Não fui capaz de perceber. Podia ter sido uma noite mal dormida, outra coisa qualquer.

Ou desespero eleitoral?
Não tenho nenhuma sondagem que me permita ligar o humor de António Costa com um resultado eleitoral. Estranhámos, de facto. Espero que seja apenas por causa de uma noite mal dormida. Nada altera esta nossa disponibilidade para a convergência.

Há várias geometrias possíveis para uma solução política. Vê como possível em último caso um governo minoritário do PS com apoio dos liberais ou do PAN, por exemplo, tornando PCP e BE dispensáveis?
Isso é um desenho possível, mas não queria precipitar-me em relação a apoios e desapoios. A nossa decisão será autónoma e será tomada em função de questões como salários, reformas, SNS, creches, habitação, a produção nacional. A resolução destes problemas foi adiada e eles foram-se acumulando – mas há caminho para andar.

Se o PCP tiver menos deputados do que em 2019, terá valido a pena chumbar o OE de 2022?
Aceitaremos o resultado que o povo nos quiser atribuir. A vida demonstrou o papel insubstituível da CDU na procura de soluções. Na terça-feira, ouvimos que foi o PS que resolveu o problema do aumento das pensões, quando antes tinha dito que não, que não era possível.

O PS está a fazer campanha apropriando-se de propostas e bandeiras do PCP?
Está a procurar fazer tudo por tudo para que a realidade não seja demonstrada. Não imaginam aqueles encontros com o Governo e como lutámos pelas nossas medidas! Eram duros mas frontais.

E não sentem revolta por verem o PS a apropriar-se de coisas que tanto custaram ao PCP?
A satisfação por termos alcançado é superior a esse posicionamento de zanga. Não. São medidas de fundo. Os reformados sabem que foi o PCP que lutou por eles, tal como na questão dos transportes ou nos manuais escolares à borla ou nas creches. São muitos os portugueses que sabem. Isto é que nos conforta.

Se o PCP ficar atrás do Chega, como algumas sondagens apontam, isso põe em causa a direcção e a sua liderança?
Essa matéria não consta das nossas preocupações. O Chega afirmar-se-á tanto quanto o agravamento dos problemas económicos e sociais. É importante dar resposta a estes problemas. Resolvam-se esses problemas e o Chega terá o resultado que merece. Não vale a pena fazer combates verbais.

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