O riso e a dor
Os nossos amigos é que são as pessoas mais importantes do planeta porque são eles que nos fazem rir e chorar. E nos magoam e nos fazem sentir vivos até em momentos tristes.
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Tenho ideia de que terá sido a uma segunda-feira, talvez porque o encontro estivesse marcado para o dia seguinte. A mensagem de telemóvel, escrita, foi curta: “vou ter de adiar o nosso almoço. Depois explico”. Não me lembro agora se já o tínhamos feito antes, mas fui, durante muitos anos, perita em desmarcar almoços. Acho que com o Júlio não o faria pelo respeito que lhe tinha. Pelo apreço de um homem tão inteligente me ter acolhido sendo eu uma miúda.
Eu, ele e o Torcato saíamos em bando, fosse dia ou noite, prometendo só parar quando a boca nos doesse de tanto rir. E ríamos. E rimos muito.
Há uns tempos, num jantar, lembrei-me do dia em que entrámos num sítio de sempre onde o Herberto Hélder estava a beber. E eles, naturalmente riram-se. Riram-se com ele, depois comigo. Ríamos de tudo sabendo da fragilidade da nossa existência mas ao mesmo tempo encontrando no riso uma forma de dizer à vida: estamos aqui e não arredamos pé. Rimos sobre todas as coisas mesmo as que nos fizeram doer.
O Júlio e o Torcato eram mais cultos que meia Lisboa e riam sobre isso no eco das suas vozes já roucas de tanto rir e vociferar contra os ignorantes. Nem quero imaginar o que diriam hoje do país. Poderiam rir mas gritariam contra aquilo que todos vamos vendo e rimos mas rimos quase entre dentes. Penso que hoje somos cúmplices de tudo o que se passa à nossa volta. Antes, pela força do medo, ainda teríamos de ignorar. Agora é difícil. Rimos baixinho por vergonha. Também rimos de vergonha.
Foi aquela mensagem curta do Júlio que não estranhei apesar de saber que os nossos encontros eram sagrados. Dou um salto no tempo até ao fim-de-semana alargado em que estou a jantar num restaurante do qual o Júlio poderia rir e recebo uma chamada do João Paulo a dizer que o Júlio tinha morrido. Não passou muito tempo, mas dentro da minha cabeça desenhou-se um labirinto de perguntas sem resposta que me eram sempre devolvidas em choque. O Júlio tinha descoberto que estava doente e adiou o nosso almoço e não quis que os amigos soubessem de mais nada. Até ao dia da sua morte. Até ao dia em que fui ao cemitério em lágrimas já sem vontade de rir parecendo-me impossível que o Júlio já não estivesse ali para falar dos ex camaradas do partido onde militou e do qual se viria a rir mais tarde como tudo o que se seguiu. Júlio terá rido antes da própria morte só por ter passado um bom bocado nesta vida a enrouquecer a voz entre brindes e piadas e amigos com quem era muito generoso.
O Júlio tinha 51 anos. O Torcato ficou vivo mais 8. Levaram com eles demasiadas histórias feitas de riso e cólera.
O João Paulo, que me deu a notícia da morte do Júlio, naquele 5 de Outubro de há muitos anos, morreu há dias. Era uma Moby Dick cheia de riso e livros e histórias que não terminavam. A Paula, amiga comum, lembrou no velório uma frase que ele repetia: “prefiro sexo, não havendo…” e essa frase servia para qualquer assunto mesmo não havendo assunto. Mesmo sendo desconfortável. Mesmo sendo desadequada. Era isso que faria rir o João Paulo, o Júlio e o Torcato, amigos que souberam rir sempre, mesmo quando a vida deixou de ter piada.
Independentemente do momento em que nos unimos e separámos, a memória deles está comigo e estará sempre. A memória anda ali a competir saudavelmente com o riso: são triunfos sobre a morte.
Os nossos amigos é que são as pessoas mais importantes do planeta porque são eles que nos fazem rir e chorar. E nos magoam e nos fazem sentir vivos até em momentos tristes.
Os amigos são impossíveis na dor que nos provocam em vida mas quando se vão embora levam com eles um braço nosso, um dedo de uma mão, um punhado de cabelos que não voltará para nós. Os amigos fazem com que a vida fique mais pobre e isso às vezes é insuportável. Até porque em vida podíamos ter dado mais, abraçado mais, feito mais jantares e férias juntos.
O Sérgio Godinho, amigo do João Paulo, um dia inventou os versos que valem uma vida: “é que hoje fiz um amigo e coisa mais preciosa no mundo não há”.
Aos amigos.