Morreu de covid ou com covid? Vamos combater as mentiras
A única coisa que pode salvar mais vidas (covid e não-covid) do que a medicina, é a boa comunicação médica e científica, e era bom que não estivesse tantas vezes nas bocas de quem nada percebe sobre o assunto.
Mais uma mentira. É imperativo que se façam estas correcções. Após quase dois anos de pandemia, há muita coisa que é discutível e matéria de opinião, mas esta discussão só será lógica e frutífera se for baseada em factos. Na noite de terça-feira, José Miguel Judice no seu comentário habitual na SIC Notícias, disse que “estão a morrer pouquíssimas pessoas, e que a maioria é com covid e não de covid”. Esta insinuação é falsa, e é também um dos infinitos argumentos dos negacionistas, porque pressupõe que os médicos estão a inflacionar propositadamente os números da pandemia. Esta acusação é grave e contribui para intoxicar a opinião pública. A única coisa que pode salvar mais vidas (covid e não-covid) do que a medicina, é a boa comunicação médica e científica, e era bom que não estivesse tantas vezes nas bocas de quem nada percebe sobre o assunto.
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Mais uma mentira. É imperativo que se façam estas correcções. Após quase dois anos de pandemia, há muita coisa que é discutível e matéria de opinião, mas esta discussão só será lógica e frutífera se for baseada em factos. Na noite de terça-feira, José Miguel Judice no seu comentário habitual na SIC Notícias, disse que “estão a morrer pouquíssimas pessoas, e que a maioria é com covid e não de covid”. Esta insinuação é falsa, e é também um dos infinitos argumentos dos negacionistas, porque pressupõe que os médicos estão a inflacionar propositadamente os números da pandemia. Esta acusação é grave e contribui para intoxicar a opinião pública. A única coisa que pode salvar mais vidas (covid e não-covid) do que a medicina, é a boa comunicação médica e científica, e era bom que não estivesse tantas vezes nas bocas de quem nada percebe sobre o assunto.
Passo a explicar.
A determinação da causa de morte é um acto médico, que só ao médico diz respeito. Está longe de ser uma ciência infalível, como toda a medicina também não o é. Mas obedece à melhor interpretação dos dados clínicos disponíveis, e é feita com a mesma seriedade com que nos aplicamos na busca de um diagnóstico.
SARS-CoV2 é o nome do vírus, e covid-19 (Coronavírus disease) é o nome da doença. O vírus nem sempre causa doença. E a doença tem espectros infinitos de gravidade. A partir do momento que o doente tem teste positivo e apresenta sintomas que justificam a ida ao hospital, onde alguns casos justificam o internamento, começa uma démarche não só diagnóstica, mas também estratificadora da gravidade da doença, e consequente previsão do que está para vir.
Além dos níveis de oxigenação sanguínea — talvez o parâmetro mais importante na estratificação da gravidade —, acoplamos o estudo analítico que nos permite aferir a dimensão da reacção inflamatória que o organismo está a espoletar contra o vírus, e como sabem sendo a expressão mais grave da doença a pneumonia, completamos com Rx pulmonar e quase por regra com TAC pulmonar, para determinar a área afectada com pneumonia. E depois temos scores de gravidade sustentados na área pulmonar atingida. Se for inferior a 25% dificilmente será uma preocupação, aos 50% já nos preocupa muito, e acima dos 75% sabemos que vai ser uma luta grande para salvar aquela vida.
Nós, clínicos, vivemos disto e sabemos bem qual a interferência de uma doença aguda numa doença crónica. E se com a leitura de todos os dados, a nossa interpretação clínica for de que foi a doença covid a causa de morte, assim ficará registado; se a nossa interpretação for que apesar do teste positivo para SARS-CoV2, a doença covid era muito ligeira ou inexistente, então a causa de morte será outra.
Por exemplo, um doente com insuficiência cardíaca já conhecida mas perfeitamente compensada e com boa qualidade de vida, que tem o infeliz desfecho de se infectar com SARS-CoV2, vem ao hospital com sinais analíticos de uma grande reacção inflamatória, uma TAC pulmonar com um atingimento muito expressivo, e morre no decurso deste internamento, a causa de morte será doença covid porque esta pessoa poderia ter vivido uma dezena de anos com aquela doença crónica, e teve uma doença aguda muito grave. Por outro lado, um doente com uma insuficiência cardíaca em fase terminal, que se infecta com SARS- CoV2 mas com uma expressão da doença nula ou redundante, agrava a insuficiência cardíaca e morre, a causa da morte será insuficiência cardíaca. Este raciocínio tem subjectividade, mas é baseado na melhor interpretação da ciência do médico assistencial, e muitas vezes é discutido entre pares.
Se um doente tiver um politraumatismo grave e morrer e, por acaso, tiver um teste positivo para SARS-CoV2, a causa de morte é o politraumatismo. Se um outro politraumatizado grave sobreviver e passados uns meses, extremamente débil em reabilitação motora, no decurso da sua recuperação tiver doença covid, grave o suficiente para lhe tirar a vida, então a causa de morte será covid, apesar de haver um contributo importante da debilidade causada pelo traumatismo, mas se não fosse o SARS-CoV2 poderia viver mais tempo ou até voltar ao seu estado prévio.
Espero ter ajudado. Espero que parem de falar do que não sabem, e espero que deixem de intoxicar a opinião pública, que sobre estas matérias vale vidas.
Com todo o respeito, pelo Dr. José Miguel Júdice e pelo seu percurso, quando me virem a falar na televisão, cheio de certezas, sobre Código Penal, por favor avisem-me.
Ainda falta muito para nos livrarmos deste desafio colectivo. Quanto mais tempo demorarmos a discutir esta e tantas outras premissas, que não deviam ser matéria de discussão por não peritos, muito mais tempo iremos demorar a centrarmo-nos nas soluções.
Vale tudo menos mentiras e demagogia. E não serve de nada dizer “Bom Natal, com cuidado, mas sem exageros”, o que nos serve a todos é dizer: “Bom Natal, com testes, assintomáticos, e terceira dose para todos.”