Obrigado, mas não, obrigado
Esta é uma geração que questiona e que não se conforma. A geração que viveu uma grave crise económica, uma crise pandémica e agora uma crise habitacional. Uma geração que está condenada a manter raízes sob a alçada do suporte financeiro dos pais por não se conseguir emancipar antes da vida adulta. Uma geração que já deu tudo e pouco teve em troca. Uma geração que esperou, mas a quem o país falhou e não dá futuro.
Pela primeira vez desde que há mais candidatos do que vagas, mais de 50 vagas de formação no Internato Médico Especializado ficaram por preencher. É um marco simbólico pesado, que transmite uma mensagem: é urgente reformar, sob pena de perda de qualidade e quantidade em cuidados de saúde.
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Pela primeira vez desde que há mais candidatos do que vagas, mais de 50 vagas de formação no Internato Médico Especializado ficaram por preencher. É um marco simbólico pesado, que transmite uma mensagem: é urgente reformar, sob pena de perda de qualidade e quantidade em cuidados de saúde.
Uma peça jornalística recente do Observador veio trazer a público mais uma ronda de relatos de jovens médicos que dizem “Obrigado, mas não, obrigado” a oportunidades de formação especializada no Serviço Nacional de Saúde (SNS). É um retrato das lamentações, frustrações e desgaste desta nova geração de profissionais recém-formados que “não quer ser escravizada”.
As condições laborais no SNS têm seguido uma constante espiral de degradação, com estagnação de progressão nas carreias, uma redução dos salários reais — veja-se que está prevista em 2022 uma actualização de 0,9% contra uma taxa de inflação prevista não inferior a 4%, ou seja, uma perda de poder de compra superior a 3% — associada a défices graves de infra-estrutura, gestão de recursos humanos e recursos financeiros.
Tendo passado pelos seis anos de mestrado integrado em Medicina durante os anos de resgate financeiro e grave crise económica, e entrado no mercado de trabalho durante a pandemia de covid-19, com todas as falhas que revelou um SNS depauperado, muitos dos jovens médicos que estariam dentro de duas semanas no internato da especialidade decidiram que bastava.
Assistiram de dentro ao quase colapso de boa parte dos hospitais e cuidados primários, que congelaram a maioria da sua actividade dita não-essencial para evitar um colapso total na resposta à covid-19, comprometendo a saúde de milhares de utentes, e a formação de centenas de estudantes e médicos internos.
Assistiram de dentro à degradação das infra-estruturas e materiais de trabalho que o SNS oferece, à limitação de acesso a métodos complementares de diagnóstico diferenciados e ao condicionamento da prática da melhor medicina por constrangimentos de gestão de recursos humanos e da austeridade encapotada que se manteve muito para lá de 2015.
Assistiram de dentro ao burnout generalizado dos seus colegas mais velhos, à pressão constante das direcções clínicas para o cumprimento de horas extraordinárias infindáveis muito além das 120 horas anuais legalmente exigíveis, e à dificuldade de as converter em folgas por recusa dos directores de serviço — muito à custa da dificuldade de cumprimento dos serviços essenciais por falta de recursos humanos mas, também, por incapacidade de gestão de todos os envolvidos.
Assistiram de dentro à forma como milhares de médicos internos aguentam serviços hospitalares, garantem escalas de urgência sem médicos especialistas escalados, garantem o cumprimento de agendas de consultas e não têm “direito a desligar” — saem dos serviços e é-lhes exigido estudo, actualização, produção científica, congressos e formações pagas do seu próprio (fraco) bolso numa “curriculite” tóxica para que quatro a cinco anos mais tarde possam ter uma hipótese de não ter que reiniciar a vida noutro ponto do país.
Assistiram a amigos e colegas que, ao longo dos últimos anos, têm abandonado Portugal e procurado formação pela Europa e pelo mundo, com sucesso, com programas que respeitam a necessidade de equilíbrio entre a vida profissional e pessoal/social, que oferecem salários reais dignos e liberdade de escolha na procura de emprego: sem concursos infindáveis, sem pressão de criação de currículos incomportáveis com o horário legal de trabalho e com condições de trabalho que lhes permitem praticar a melhor medicina aos seus utentes.
Assistiram à estagnação de rendimentos — iguais em todo o território, apesar das inegáveis disparidades de custo de vida —, enquanto o mercado de habitação está estrangulado e limita o acesso de jovens famílias a arrendamento ou venda acessíveis, atirando uma suposta classe com rendimentos altos para a “geração renda” e dependente de pretensos apoios sociais.
As mais de 50 vagas não preenchidas — em particular 2/3 de Medicina Interna no maior e mais diferenciado hospital do país — e os mais de 500 jovens médicos excluídos do concurso deveriam fazer soar os mais estridentes alarmes nas chefias de serviço, nas direcções clínicas, nos conselhos de administração e nas estruturas de administração de saúde do Estado (ACeS, ARS, ACSS e Ministério da Saúde), que têm sido ora actores principais ora coniventes com um fechar de olhos a um drama que não nasceu ontem.
Esta é uma geração que questiona e que não se conforma. A geração que viveu uma grave crise económica, uma crise pandémica e agora uma crise habitacional. Uma geração que está condenada a manter raízes sob a alçada do suporte financeiro dos pais por não se conseguir emancipar antes da vida adulta. Uma geração que já deu tudo e pouco teve em troca. Uma geração que esperou, mas a quem o país falhou e não dá futuro.
Não basta resiliência. Não basta vocação. Não bastam boas intenções. É urgente reformar.