Apostar na reindustrialização é garantir a soberania da União Europeia
A pandemia obrigou os dirigentes europeus a perceber que não tinham a capacidade de fabricar “produtos muito básicos e muito necessários”. A estratégia industrial já existe e é boa, agora é preciso garantir que sai do papel.
Depois de décadas a desindustrializar-se, a União Europeia percebeu há uns anos que tinha de reverter o processo. O problema é que até à pandemia de covid-19, “quando a decisão era para ser tomada a nível político, muitas vezes as razões de ordem financeira e económica pesavam e, na maior parte dos casos, compensava mais importar de países, como do Sudeste Asiático, do que produzir na Europa”, diz a eurodeputada Maria da Graça Carvalho. O resultado é que se “tornou essencialmente vocacionada para os serviços, perdeu a capacidade de, se necessário, produzir na Europa, e perdeu a cultura da produção”.
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Depois de décadas a desindustrializar-se, a União Europeia percebeu há uns anos que tinha de reverter o processo. O problema é que até à pandemia de covid-19, “quando a decisão era para ser tomada a nível político, muitas vezes as razões de ordem financeira e económica pesavam e, na maior parte dos casos, compensava mais importar de países, como do Sudeste Asiático, do que produzir na Europa”, diz a eurodeputada Maria da Graça Carvalho. O resultado é que se “tornou essencialmente vocacionada para os serviços, perdeu a capacidade de, se necessário, produzir na Europa, e perdeu a cultura da produção”.
Sublinhando que a UE “apresentou a sua estratégia para a industrialização um dia antes de ter sido conhecida a identificação do vírus da covid-19”, Carlos Zorrinho lembra que a “deslocalização da produção na Europa estava a sangrar a capacidade de emprego, de reter populações, de criar riqueza”. Ao mesmo tempo, a Europa “estava a investir menos em inovação e em ciência, do que os Estados Unidos, o Japão, a Coreia do Sul”.
Olhando para “a nova indústria, a indústria 4.0” – descrita como quarta revolução industrial, a tendência actual em que, para além da automatização, se assiste a uma total ligação das máquinas com outras máquinas e com as pessoas –, o eurodeputado eleito pelo Partido Socialista refere que a legislação europeia e a sua fragmentação não têm permitido “encontrar um modelo alternativo de dados que nos torne concorrenciais”. Tudo isto enquanto se caminha para uma economia livre de carbono.
A pandemia obrigou os dirigentes europeus a perceber que não tinham a capacidade de fabricar “produtos muito básicos e muito necessários”, diz a vice-coordenadora do Grupo do Partido Popular Europeu na Comissão Indústria, Investigação e Energia. “Portanto, houve um repensar de tudo isso e espero que esta nova atitude não se perca”, sublinha.
“O que eu diria que mudou foi a consciência de que a reindustrialização não é apenas algo de que a Europa precisa para se desenvolver, ser mais competitiva, dar mais oportunidades às suas populações, em particular aos seus jovens, mas sobretudo que ser capaz de responder a estas disrupções do ponto de vista de autonomia estratégica – nomeadamente em termos de energia, matérias-primas, de acesso a alguns elementos base da indústria farmacêutica, hidrogénio, semicondutores, baterias – é necessidade absoluta para a sobrevivência do próprio modelo europeu”, afirma Carlos Zorrinho, igualmente membro da Comissão Indústria, Investigação e Energia. O que a pandemia veio mostrar é que a deslocalização “põe em causa a própria autonomia estratégica da UE”.
Tanto Graça Carvalho como Carlos Zorrinho notam que falta muito para a União poder responder às suas ambições. “Para ser líder, mesmo na utilização – porque a Europa tem a ambição de ser líder em muitos sectores mesmo não produzindo as componentes necessárias, como é o caso do digital –, para ser líder no digital, não se consegue só tendo a investigação fundamental e os conhecimentos teóricos, precisamos de ter nós próprios a capacidade de produzir os microprocessadores, os supercomputadores”, alerta a deputada eleita pelo PSD, ex-ministra da Ciência e do Ensino Superior.
Cultura da produção
Falando de “cadeias de valor em que temos de liderar”, Carlos Zorrinho enumera a “transição energética verde, onde não podemos perder essa posição” e, sobretudo, a cadeia de valor “das energias renováveis, que é também toda a tecnologia associada, as baterias, os carros eléctricos, as redes de condução, os sistemas de controlo… toda uma nova visão que exige equipamentos e conhecimentos, e que produz riqueza e valor” e a da “transição digital”. Ora aqui, a UE parte com significativo atraso e, para além de ser capaz de produzir os equipamentos fundamentais, como os supercomputadores, tem de ter “as suas próprias nuvens de dados”. Sem isso, estamos perante “uma disrupção estratégica fundamental”.
Em termos de estratégia global, reforça o eurodeputado, “o que é muito importante é que a UE seja indispensável em todas as cadeias de valor determinantes para o futuro do mundo”. Uma vez que “as cadeias de valor estão todas interligadas, uma fragilidade num nó pode colocar-nos em grande dificuldade”.
Para tornar o desígnio da reindustrialização exequível, é preciso juntar à capacidade de investimento uma boa estratégia de longo prazo. A urgência sublinhada pela pandemia e os programas entretanto aprovados dão algumas garantias de financiamento. Quanto à estratégia actual, Graça Carvalho descreve-a como “bem delineada”: “É uma estratégia baseada em ecossistemas verticais, define 14 ecossistemas prioritários para a Europa, que estão bem escolhidos”, diz, lamentando que falte “a sua ligação horizontal”, para além de sectores “que são transversais a muitos destes, como a indústria transformadora metalomecânica, que não é um dos prioritários”.
Mas a eurodeputada nota que “a Europa nunca tem propriamente problemas em desenhar estratégias e tem desenhado sempre estratégias excelentes”, enumerando “a estratégia de Lisboa, da Europa 2020, temos agora o Green Deal, a estratégia industrial…” O que é preciso agora é “um grande investimento em infra-estruturas, e fazê-las”, “investir mais em ciência e em inovação”, “ter recursos humanos qualificados em todas estas áreas” e “reganhar esta cultura da produção” e “muito, muito importante, criar um ecossistema favorável à inovação”.
Remunerar o trabalho
Em relação aos obstáculos, tanto Graça Carvalho como Carlos Zorrinho referem a excessiva burocracia (europeia e nacional) e a eurodeputada aponta ainda “o sistema fiscal que, muitas vezes, não é amigo do investimento, da inovação” e a falta de “uma cultura de risco”, geralmente mais presente nos EUA ou no Sudeste Asiático. Sem lidar com estas barreiras, sublinha, podemos acabar de novo com “uma bonita estratégia como tantas outras, que dão gosto ler, mas que depois não têm resultados”.
Um dos erros em que é preciso não cair, alerta Carlos Zorrinho, é tentar fazer igual aos outros. “Temos de fazer diferente, diferente daquilo que os outros já fazem porque os outros estão à nossa frente”, diz. No digital “fazer diferente é focar mais as soluções nas pessoas”, defende, dando o exemplo de um parecer em que foi relator e que acaba de ser aprovado no Parlamento Europeu, do regulamento dos mercados digitais, em que a filosofia é exactamente essa, isto numa Europa em que os dados são das pessoas.
Ainda em relação a erros, e aqui olhando mais para Portugal do que para a Europa, o eurodeputado refere a importância de “valorizar os recursos endógenos”. Nesta fase de aprovação de projectos e de investimentos em novas e velhas indústrias renovadas, sustenta que esses projectos têm de “contemplar a remuneração adequada do conhecimento e a remuneração adequada do trabalho”. Só assim será possível “atrair e fixar a geração mais qualificada de sempre, como tem sido chamada”: esta geração “tem de ser melhor remunerada e isso deve de estar incluído no próprio projecto”, afirma, propondo que não possam ser aprovados projectos “que não consigam gerar riqueza suficiente para pagar o conhecimento que incorpora”.