“Um actor completo”, “um intérprete de eleição”: reacções à morte de Rogério Samora
Presidente da República e primeiro-ministro recordam especialmente o protagonista de O Delfim, de Fernando Lopes. Os que trabalharam com ele destacam a “loucura” e a “disponibilidade” de um actor incomum. “Sempre que entrava numa sala, sentia-se a sua presença”, sublinha o director do Teatro Nacional D. Maria II, Pedro Penim.
Miguel Gomes, realizador
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Miguel Gomes, realizador
“Gostava no Rogério Samora do lado imprevisível e da loucura dele. Apesar de trabalhar muito em televisão, tinha uma paixão enorme pelo cinema, o que não acontece com todos os actores, e uma grande disponibilidade. Essa loucura e essa disponibilidade permitiam-lhe fazer coisas muito fora do comum. Às vezes até era necessário controlá-lo um bocado, porque havia nele uma voragem de propor coisas para o personagem e para o filme, mas sempre de uma forma muito generosa. Não tinha qualquer tipo de problema de sair de uma zona em que controla as coisas e de se expor de uma maneira que não é comum num actor.
No caso do único trabalho que tivemos juntos [nos dois primeiros filmes da trilogia As Mil E Uma Noites, 2015], ele faz de primeiro-ministro. Gosto muito dessa personagem. Muitas críticas disseram que era uma caricatura grosseira do Passos Coelho e que havia nela alguma maldade. Nunca a vi dessa forma. Sempre a vi com um elemento de inocência, um rapazola que quer inscrever o nome dele, a presença dele, com um canivete nas árvores.”
O que ele fazia em cinema era bem melhor do que o que fazia em televisão, mas isso não é culpa dele, tem a ver com o material de trabalho. É muito difícil para um actor dizer diálogo tolos e sair-se bem. Mas com o [Manoel de] Oliveira... O que ele faz no Party [1996] é incrível, devia rever-se o filme para perceber o Rogério enquanto actor. Mesmo em pequenos papéis, como n’Os Canibais [1988], adoro a presença dele. Mas claro que aquilo que provavelmente lhe deu mais projecção em cinema foi o que fez com o Fernando Lopes. Tinham uma relação de grande cumplicidade.”
Alexandra Lencastre, actriz
“O Rogério foi um amigo de uma vida. É um amigo de uma vida. As pessoas vivem na nossa memória e no nosso coração para sempre. O Rogério fez parte de mim. É uma perda grande que me, e nos, deixa uma saudade muito grande. Espero que o país não se esqueça do tanto que ele nos deu.”
Pedro Penim, actor e encenador, director do Teatro Nacional D. Maria II
“Tinha uma personalidade muito envolvente, sempre que entrava numa sala sentia-se a sua presença. Ele dizia que o Worst Of [que fez com o Teatro Praga em 2018 e 2019] seria o seu último espectáculo, que era a despedida dos palcos. Porque estava cansado, porque queria fazer outras coisas. Ainda por cima, costumava contar que tinha começado como figurante no Monólogo do Vaqueiro, e a peça incluía precisamente uma cena desse auto de Gil Vicente. De alguma forma, aquilo fazia uma circunferência quase perfeita, com o início a tocar no fim [da carreira].
Como actor, o Rogério era muito empenhado e obsessivo com o seu trabalho; tentava ir sempre cada vez mais longe e todos os dias se preocupava em renovar o desejo de ir para lá da primeira impressão. Além disso, acreditava muito nas pessoas e nas relações, fossem de amizade, de trabalho ou românticas — e precisava de se sentir amado (para um actor, a aprovação do público pode ser tão viciante como o ópio).”
Márcia Breia, actriz
“O Rogério, num ano em que vi tantos colegas partirem, é mais uma estrela que recolheu a outra galáxia. E demasiado cedo. Não se pode dizer que era transparente, mas tinha uma opacidade propositada que, depois de ultrapassada, escondia um ser humano muito interessante. Tinha uma personalidade forte, capaz de um grande sentido de humor, mas vislumbrava-se nele alguma tristeza contida. E, às vezes, tornava-se intratável, mas era um bocadinho de show-off dele para ele. Também fazia tudo para não ser simpático, mas bastava que alguém se metesse com ele para se tornar alegria.
Acompanhei as aventuras, os problemas nas relações, a profissão e as incertezas do Rogério, e nós tínhamos uma relação muito maluca porque eu não sou muito bem acabada e havia uma espécie de picardia. Também pregávamos partidas em conjunto, como quando, logo no início dos ensaios do Worst Of, fingimos que estávamos zangados um com o outro e que tinha sido um erro convidarem-nos para a peça. O Rogério é alguém que deixa um saldo muito positivo na minha vida.”
Filipe La Féria, encenador
“[Estreou-se nos palcos em 1981] na Paixão segundo Pier Paolo Pasolini [de René Kalisky], uma peça muito polémica à época. Procurei um actor para fazer o assassino do Pasolini, que era o Giuseppe Pelosi, e surgiu-me o Rogério Samora: um jovem, devia ter 17 ou 18 anos, com uma força extraordinária. Antes, tinha feito uma figuração numa peça do Teatro Variedades, sob a direcção do [Carlos] Avilez, e, devido à idade e à figura, foi-me sugerido que fizesse uma audição. De facto, era o actor ideal para aquela personagem. Até pelas características temperamentais dele. Ele dava por tudo por tudo em cada papel que fizesse. Aquilo era tudo ou nada. Interpretou a personagem com uma sensibilidade e com uma dádiva, porque ele entregava-se por inteiro a tudo o que fazia e até ganhou o prémio de revelação desse ano.
A actuação dele impressionou, era completamente especial e única. O espectáculo esteve oito meses na Casa da Comédia, foi um enorme êxito. Ainda fiz com ele A Marquesa de Sade [de Yukio Mishima], Eva Perón [de Copi], a A Ilha do Oriente [de Mário Cláudio]. Ele era um amigo, um homem com sensibilidade à flor da pele, como todos os actores, um ser extremamente sensível e com uma revolta íntima. Tinha o inferno quase dentro dele. O inferno e o céu, que os actores todos têm. Ele tinha a dor dentro dele, que é fundamental para os actores a terem também. A alegria, mas também a dor dentro deles próprios.
A evolução foi muito feita na Casa da Comédia e nos espectáculos que fez comigo. Depois, a notoriedade, entregou-se depois a outros encenadores e teve uma carreira brilhante no cinema e na televisão, mas sobretudo no cinema. Eu recordo o filme que ele fez com o Fernando Lopes, O Delfim, da obra do José Cardoso Pires, em que ele tem uma interpretação já adulta, fabulosa. O Fernando Lopes também o considerava um actor de eleição.
E compreendia-o, porque um encenador tem de compreender cada actor. Cada actor é um mundo e é um ser humano diferente. Nós somos comuns, mas somos todos muito diferentes uns dos outros. Era um actor que o encenador tinha de compreender, porque ele transportava toda a sua força, a sua raiva, a sua revolta para o palco. Trabalhou também com a Fernanda Lapa, fez espectáculos também notáveis, interpretações notáveis com a Fernanda Lapa. Mas com o encenador tinha uma relação amor-ódio.
O jovem que eu conheci, o jovem Rogério Samora tinha a revolta dentro dele, era um vulcão. Mas tinha características que depois permaneceram em toda a sua vida de teatro: essa entrega total a tudo o que fazia, esse querer superar-se a si próprio em cada papel, ser mais o papel até do que ele próprio, a procura, a pesquisa que ele fazia.
Lembro-me que ele gostava tanto de ensaiar que eu dizia muito por vezes que já me cansava de o ver, porque ele estava sempre a pedir: ‘Ah, Filipe, faça a cena mais uma vez, que eu ainda posso dar mais’. Portanto, era um insatisfeito. Havia a sublimação da arte. A vida, para ele, era pequena. Não lhe bastava.
O papel dele que mais me marcou foi o primeiro, o Giuseppe Pelosi, o jovem adolescente que mata na praia o Pasolini. Marcou-o para sempre. Depois ele teve um trabalho notável n'A Marquesa de Sade, era um apaixonado também por esses temas em que é preciso dar tudo por tudo, em que vamos mesmo ao âmago de nós próprios. Na Eva Perón, ele fazia maravilhosamente o irmão da Eva Perón, foi também um boom quando se levou à cena. Acho que as pessoas não morrem totalmente, ficam dentro de nós. E o Rogério como amigo e como artista também fica dentro de mim.”
Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República
“A morte precoce de Rogério Samora, um dos mais carismáticos actores da sua geração, é uma grande perda para os seus familiares e amigos, mas também para o público português de teatro, cinema e televisão, que nele encontrou, há décadas, um intérprete de eleição. [Foi] uma presença forte, afirmativa, um actor que deixou marca, em particular no registo por natureza mais perene, que é o do cinema, o que permitirá às gerações futuras entender a admiração e a estima que por ele tiveram os espectadores do nosso tempo. Rogério Samora fez teatro nos anos 80, com Filipe La Féria e Carlos Avilez, tendo trabalhado também com João Lourenço e Luis Miguel Cintra, entre outros; filmou com Manoel de Oliveira, José Fonseca e Costa, António-Pedro Vasconcelos, João Botelho ou Miguel Gomes, tendo-se notabilizado no Delfim de Fernando Lopes, onde encarou com brilhantismo um arquétipo do homem português de outras épocas já fora de época.”
João Moreira, humorista e guionista
“Trabalhámos juntos pouquinhos dias. [N’O Filme do Bruno Aleixo, 2019] ele fazia de Rogério Samora a fazer de Homem do Bussaco e teve a elasticidade, o sentido de humor e a auto-ironia para conseguir brincar consigo próprio. Sabendo que era um ícone, um actor sério, isso exige flexibilidade, humildade e humor. Ele tinha essa consciência [de ser um actor famoso, reconhecido], mas nunca com arrogância, nunca a tentar ser o centro das atenções.”
António Costa, primeiro-ministro
“Rogério Samora [era] um dos mais destacados actores portugueses. Entre outras que ficam na história do cinema português, recordo a sua interpretação em O Delfim, de Fernando Lopes.”
Graça Fonseca, ministra da Cultura
“Numa carreira que o tornou presença permanente junto do público português, seja no teatro, no cinema ou na televisão, o talento e a criatividade de Rogério Samora fizeram-no destacar-se como um dos mais completos actores da sua geração. Na sua voz e nos seus gestos, as complexidades, os matizes e as contradições da natureza humana ganhavam uma extensão única, que o público português e os seus pares sempre reconheceram. Nas personagens que interpretou, e através delas, construiu um elenco abrangente e representativo de personalidades, no qual podemos ler as diferentes fases da nossa história, mas, também, uma dimensão transversal às épocas, aos lugares e aos tempos. Por isso, o seu percurso enquanto actor foi sinónimo de versatilidade, não apenas nos papéis que interpretou, mas também no modo como desaparecia para dentro deles, permitindo que uma nova vida surgisse e respondendo à multiplicidade de olhares dos vários nomes com os quais foi colaborando. Trabalhador incansável e dedicado, actor completo e capaz dos mais diversos registos, deixa um legado inapagável de emoções e personagens.”
Rui Unas, apresentador e actor (no Instragram)
“Adeus, meu bom Rogério. Havia sempre a esperança que não fosses embora já. Foste o meu “padrinho” na minha estreia no cinema em 2003 nos Imortais [de Antonio-Pedro Vasconcelos].
Foste tão amigo, quase “paternal”, na forma como me ajudaste em tudo porque eu tremia em cada cena. Desde daí, o carinho e a alegria foi (sic) uma constante sempre que estávamos juntos. Felizmente, a última imagem que tenho tua foi a sorrires para mim.
(…) A tua saudável loucura e talento ficarão na nossa memória para sempre. És imortal para quem ficou cá.”
Conceição Queiroz, jornalista e ex-namorada (no Instagram)
“Amado Rogério. Claro que não tenho palavras. Mas cada momento fica aqui... fica aí. Energia e frontalidade. Persistência, delicadeza. (…)
Nunca publiquei as nossas fotos, não vou fazê-lo agora. Ficam apenas estas duas, uma vez que a imprensa já as tinha encontrado. (…)
Tu fizeste-me mais confiante. E tu compreendias as minhas lutas. (…)”
Miguel Costa, actor (no Instagram)
“Um espírito inquieto, que procurava sempre fazer melhor. Como se não fosse já um dos melhores.”