Mãe é mãe

Deu-me uma das mais importantes e mais difíceis coisas que se pode dar a um filho: a liberdade. Principalmente a liberdade para eu ser quem eu era. Sempre disse “vai”, um verbo árduo de ser conjugado por uma mãe.

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"A minha mãe tem choro fácil, quase tão fácil como o seu riso" guille pozzi/Unsplash

Hoje fazemos anos. Sempre foi assim. Ou melhor, sempre para mim. Para a minha mãe houve um tempo distante e inverosímil, como nos parecem os períodos da vida dos pais que antecedem o nosso nascimento, em que ela fazia anos sozinha. Sozinha salvo seja, que a minha mãe sozinha não costuma estar, tem sempre amigas à roda, quer ao vivo, quer entre o ouvido e o ombro, no telemóvel, enquanto faz alguma coisa. Mas houve um tempo em que este dia era só seu. No almoço em que fez 35 anos percebeu que eu queria juntar-me à festa. Cheguei antes do previsto. A primeira e talvez a única vez que o fiz. Costuma dizer-me que eu fui o melhor presente que recebeu, o que é querido, mas, também, óbvio, sendo filha única, ficaria ofendida se tivesse preferido um faqueiro ou uma máquina de fazer pão. Desde aí, celebramos juntas. Há 28 anos que 14 de Dezembro é o nosso dia.

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Hoje fazemos anos. Sempre foi assim. Ou melhor, sempre para mim. Para a minha mãe houve um tempo distante e inverosímil, como nos parecem os períodos da vida dos pais que antecedem o nosso nascimento, em que ela fazia anos sozinha. Sozinha salvo seja, que a minha mãe sozinha não costuma estar, tem sempre amigas à roda, quer ao vivo, quer entre o ouvido e o ombro, no telemóvel, enquanto faz alguma coisa. Mas houve um tempo em que este dia era só seu. No almoço em que fez 35 anos percebeu que eu queria juntar-me à festa. Cheguei antes do previsto. A primeira e talvez a única vez que o fiz. Costuma dizer-me que eu fui o melhor presente que recebeu, o que é querido, mas, também, óbvio, sendo filha única, ficaria ofendida se tivesse preferido um faqueiro ou uma máquina de fazer pão. Desde aí, celebramos juntas. Há 28 anos que 14 de Dezembro é o nosso dia.

Sei que a minha mãe sonhava com uma filha para encher de laços e fitas, enfiar mocassins e vestidos, fazer toilettes impecáveis. Calhou-lhe uma pequena selvagem que nunca compreendeu bem a necessidade de usar sapatos e que acabava todos os casamentos descalça e enrolada na lama com os cães. Mas ela deixava-me estar. Não tentou moldar-me, nunca se desalentou com o meu pouco entusiasmo pelas bonecas e pelo meu interesse precoce pela escalada de árvores ou por tudo o que trazia rodas e a promessa de um joelho esfolado. Pelo contrário, gostava. Do alto dos seus saltos agulha que jamais ousaram aproximar-se de um skate, admirava esta filha, não por ser feita à sua imagem e semelhança, mas precisamente pela beleza que sempre foi capaz de encontrar na autenticidade.

Um dia, enquanto a minha mãe maquilhava as minhas amigas, eu fui timidamente pedir-lhe um pouco de sombra e vi acender-se na sua cara a esperança de que eu me tivesse finalmente convertido às magias do embelezamento feminino, esperança essa que foi em segundos aniquilada, quando percebeu que a minha ideia era fazer uma marca à volta do olho como se tivesse levado um murro na cara, para fazer uma peça de teatro.

Deu-me uma das mais importantes e mais difíceis coisas que se pode dar a um filho: a liberdade. Principalmente a liberdade para eu ser quem eu era. Sempre disse “vai”, um verbo árduo de ser conjugado por uma mãe. E teve a magnitude de compreender que houve momentos em que eu precisei de estar longe dela para estar perto de mim. Entendo agora o quanto isso deve ter-lhe custado. Eu ia e, por saber que podia ir, sempre quis voltar.

Como boa sagitária, meteu-se em mil cursos, actividades e formações, de entre os quais o de astrologia, cujo gosto me passou logo na mais tenra infância. Eu pegava nos seus papéis dos mapas astrais e coloria como se fossem mandalas, aprendi a desenhar os signos antes de saber escrever e, quando conhecia alguém, a primeira pergunta que lhe fazia era: “Qual é o teu ascendente?”, espantando-me tanto quando não sabiam como se não soubessem o seu nome. Anos mais tarde, na atitude típica de desafio à mãe, gozava com a astrologia, arremessando-lhe, do alto da minha puberdade irritante, a pior coisa que se pode atirar a quem se interessa por esoterismo: “A ciência.” Tudo isto porque era uma adolescente típica. E porque tenho o ascendente em Leão.

Ainda não se inventou um termo que sirva para representar as nuances da relação entre mães e filhos. Eu proponho “umbiguidade”. Porque o umbigo materializa bem a complexidade desta ligação: por um lado é a prova do corte de um vínculo, por outro, uma marca que nos acompanhará para sempre e a prova de que o vínculo jamais será apagado.

Uma vez, disse-lhe: “A mãe é a minha melhor amiga.” Ela tratou de corrigir-me: “Não sou tua amiga. Sou tua mãe.” Fiquei desolada, mas agora compreendo. Mãe não é amiga, mãe é mãe. A frase que repetimos infinitamente e cujo significado escusa mais elaborações.

Mãe é mãe e a minha é linda, inteligente e trabalhadora. A minha mãe chora sempre no fim do Verão, chora a ouvir fados, chora com saudades de quem partiu, chora quando não se lembra da password do Facebook. A minha mãe tem choro fácil, quase tão fácil como o seu riso. Não é de esconder o que sente, é dos afectos. A minha mãe liga-me a dizer: “Fiz reiki à Sofia e já não está a tossir.” Vê-la ser a avó maravilhosa que é dá-me a mim vontade de chorar. A minha mãe toma banhos de imersão enquanto lê e fuma. É dona do seu tempo. E tem tempo para todos, especialmente se for para ajudar.

Às vezes reparo, constrangida, que ela me está a observar com o seu olhar de mãe. E ainda hoje acontece sentir o seu empurrão (nada) discreto nas costas: “Diz olá à tia”, num medo ou talvez desejo de que eu ainda seja a pequena selvagem de cinco anos. E eu: “Mãeeee”, como quem diz: “Tenho 28 anos”, mas como quem comprova que nada é mais difícil do que ser adulto ao pé de uma mãe.

A vaidade acabou por atingir-me violenta e inesperadamente com o advento dos saltos altos e do rímel na minha vida. Imitei-a em quase tudo. Na paixão pelos banhos de mar com ondas, pelas festas, pelos livros e pelas músicas do Vinicius de Moraes. Na capacidade de escrever bem e também na propensão para o auto-elogio disfarçado, como este. Copiei também coisas menos boas, como aliás a irritação com a expressão “menos boas” quando se quer dizer más. E a embirração com tantas outras expressões, das quais talvez sobressaia: “A continuação” usada como forma de despedida, com todas as suas variações, como: “A continuação de bom proveito” que tantas vezes dizemos uma à outra por brincadeira.

Partilhamos, mais do que o dia em que chegámos ao mundo, a forma como nele actuamos. A incapacidade de chegar a horas aos sítios, a desorganização, a mania que somos chiques. As poucas habilidades para a condução. A mania de cantar mesmo sem saber cantar. E sei que agora ela está a dizer que sabe cantar muito bem. E que eu também sei cantar muito bem. Sou-lhe grata por sempre ter conseguido detectar melodia na minha desafinação.

Houve um tempo em que eu andava zangada com a minha mãe e retraía-me aos seus beijinhos e abraços. Ela ficava triste, a achar que eu não gostava dela quando, na verdade, a única coisa que eu queria, era que ela gostasse tanto de si própria quanto eu gostava. Pede-me desculpa por um período que não hesitaríamos em apagar. Talvez não saiba que terei sempre muito mais a agradecer-lhe do que a perdoar-lhe.

Ensinou-me a aproveitar o melhor da vida. Como a música do Vinicius que cantávamos as duas no carro a caminho da praia: “A coisa mais divina que há no mundo é viver cada segundo como nunca mais.” A maior lição que levo dela é essa. Aproveitar. E ainda temos muito para aproveitar. Não herdei o seu jeito para despedidas afectuosas, por isso só posso desejar-lhe, do fundo do coração, a continuação de bom proveito.