Um conto de amnésia ambiental

Não foram só as combinações únicas de animais, plantas e clima que foram perdidas ao longo de gerações, mas também a memória de que existiam, condicionando as nossas percepções do mundo natural.

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Joao Silva

A história do romano, do fidalgo medieval e do homem contemporâneo. Um conto de amnésia ambiental. Estão os três num Museu de História Natural a olhar para uma exposição acerca do Homem do Paleolítico.

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A história do romano, do fidalgo medieval e do homem contemporâneo. Um conto de amnésia ambiental. Estão os três num Museu de História Natural a olhar para uma exposição acerca do Homem do Paleolítico.

O romano, lembrando o canto selvagem do Mediterrâneo, a Península Ibérica, diz: “Na minha altura já não havia estes elefantes, hipopótamos, rinocerontes ou hienas, leões e leopardos, mas ainda havia cavalos selvagens, castores e cabras em cada canto, florestas mediterrâneas tão densas que podiam ser uma selva e as aves eram tantas que tiravam o azul ao firmamento.”

O fidalgo medieval ao ouvir as crónicas do romano, diz: “Esses bichos do campo na minha altura já eram raros, mas agora a riqueza de peixe dos rios... o esturjão do Guadiana, o sável do Tejo e o salmão do Lima, Minho e Cávado, boas pescarias!”

O humano contemporâneo, maravilhado e surpreendido pela abundância de vida na paisagem do passado, diz: “Estamos a falar do mesmo sítio? Nós hoje mal temos coelhos... Castores?! Isso não é só no Centro da Europa? Cavalos selvagens?! Hoje temos domésticos...” O romano, lembrando o nome da província, ri e responde: “Hispânia era a terra dos coelhos...” O fidalgo medieval, pergunta: “E as ‘bestas'? O que é feito do urso que ainda existia nas serras do Algarve no século XIV, do lobo que existiu em todo o território nacional até ao começo do século XX e das duas espécies de lince da Península, o lince ibérico, de pelo pardo, e o lince euro-asiático, de pelo cinzento?

O Homem do Paleolítico, ouvindo tamanha discussão, acorda, para grande espanto dos três, e diz: “No meu tempo a paisagem era tão maravilhosa e inspiradora, que fazíamos pinturas nas rochas dos animais, cabras, veados, cavalos, auroques... Eram o centro da nossa arte. Vão ver as pinturas do Côa! Homem contemporâneo! Ouvi falar dos teus poderes para destruir mas também para criar, escuta os nossos contos, olha a tua paisagem e imagina um mundo mais selvagem. Não só para sobreviveres, ao teres um mundo mais saudável para as tuas necessidades, mas também para viveres: não ser maravilhado com o mundo natural é viver com a alma fria. Sê o primeiro de nós verdadeiramente sapiens, sábio e restaura a natureza!

A amnésia ambiental, em inglês shifting baseline syndrome, é um conceito usado para descrever “uma mudança gradual nas normas aceitas para a condição do mundo natural devido à falta de experiência, memória e/ou conhecimento de sua condição passada”. As gerações do presente perdem a capacidade de percepcionar as mudanças na abundância e diversidade de vida selvagem ao longo do tempo - a natureza de alguém com 20 anos é diferente da natureza de alguém com 40 ou 60. O humano tende a imaginar a natureza estática dos tempos de criança. Quando a natureza é dinâmica e está em decadência há várias gerações, esta é uma falha clara na nossa percepção do mundo.

Não foram só as combinações únicas de animais, plantas e clima que foram perdidas ao longo de gerações, mas também a memória de que existiam, condicionando as nossas percepções do mundo natural. Por exemplo, hoje existem cerca de 1000 exemplares de lince-ibérico, uma clara melhoria dos cerca de 100 no início do século XX, mas ainda longe dos números dos anos 60, em que eram cerca de 5000, e claramente longe dos números da Idade Média, em que era um animal abundante em toda a península.

Num mundo cada vez mais degradado, simples e estéril. É preciso recordar as paisagens do passado, ver as do presente e imaginar as que queremos para o futuro. É preciso imaginar um mundo restaurado, complexo, a fervilhar de vida.

É preciso renaturalizar a nossa imaginação.