O mundo acaba e começa todos os dias
Nunca saíra da terra onde nasceu, uma pequena aldeia no Norte do país. Os pais não tinham dinheiro nem vontade de viajar. Diziam-lhe muitas vezes que vivia no melhor sítio do mundo. Não acreditava. Já tinha visto sítios mais bonitos na televisão. Paris, por exemplo, onde se encontrava a sua melhor amiga.
Aos seis anos percebeu que todas as pessoas que conhecia iam deixar de existir. Sentada no sofá gasto da sala, com os pés em cruz apoiados no chão, e em frente ao televisor desligado por estar avariado, teve este pensamento que a aterrorizou: toda a gente no mundo, incluindo ela própria, iria morrer. Imaginou como seria o mundo sem si. E concluiu quase de seguida que seria exactamente igual ao mundo antes de si.
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Aos seis anos percebeu que todas as pessoas que conhecia iam deixar de existir. Sentada no sofá gasto da sala, com os pés em cruz apoiados no chão, e em frente ao televisor desligado por estar avariado, teve este pensamento que a aterrorizou: toda a gente no mundo, incluindo ela própria, iria morrer. Imaginou como seria o mundo sem si. E concluiu quase de seguida que seria exactamente igual ao mundo antes de si.
Ouviu o cão ladrar no quintal e o pensamento foi interrompido por momentos. Levou o indicador direito à narina e retirou um burrié. Entreteve-se a fazer uma bolinha esverdeada com o indicador e o polegar, que acabou por chutar com a unha do indicador. Os pais estavam na horta e a sua melhor amiga tinha ido de férias para o estrangeiro com a família. A Paris. Que sonho.
Nunca saíra da terra onde nasceu, uma pequena aldeia no Norte do país. Os pais não tinham dinheiro nem vontade de viajar. Diziam-lhe muitas vezes que vivia no melhor sítio do mundo. Não acreditava. Já tinha visto sítios mais bonitos na televisão. Paris, por exemplo, onde se encontrava a sua melhor amiga. Os pais eram as pessoas mais ricas da aldeia, estrangeiros, ingleses, que descobriram aquela terra e se tinham apaixonado. As férias do Natal eram sempre uma chatice enorme.
Andar de bicicleta estava muitas vezes fora de questão, demasiado frio e chuva. E agora com o televisor avariado não tinha nada para fazer em casa. Ainda não sabia ler bem, aprendeu a juntar as sílabas, mas não conseguia aventurar-se a ler muitas frases seguidas. Era difícil e chato. Ouviu o bebé da vizinha chorar, a Alice, um bebé gordo e choramingas. Tinha ficado muito impressionada quando conheceu a Alice. Não sabia que os recém-nascidos eram tão feios e mirrados. Não tinha irmãos e na aldeia só havia miúdos e miúdas mais crescidos. Quando nasceu a Alice e foi espreitar à casa dos vizinhos, dois dias depois de terem regressado do hospital, também lhe ocorreu que o mundo, para aquele bebé, tinha começado só agora. Quando para ela o mundo já existia há seis anos.
Sentiu-se crescida nesse momento. Tinha pensamentos bons; gostava de pensar, mas não durante tanto tempo como agora. Há pelo menos uns bons 15 minutos que não se mexia. Levantou-se do sofá num salto. Foi até à cozinha à procura de comida. Reparou no tacho em cima do fogão. Ligou o botão do gás. Os restos de massa com carne, um dos seus pratos preferidos, iam saber mesmo bem depois de aquecidos. De repente, ao destapar o tacho e sentir o cheiro da carne, percebeu que não tinha assim tanta fome. Ouvia-se baixinho o silvar do gás. Foi buscar os fósforos à gaveta, mesmo ao pé dos talheres grandes. Raspou um fósforo na lateral áspera da caixa e nada. Raspou um outro e também não conseguiu acendê-lo. O cão voltou a ladrar. Largou a tarefa de aquecer a comida no tacho. Decidiu ir até ao quintal brincar com o cão e depois ia ter com os pais à horta. Ainda iam demorar, o melhor seria procurar companhia. Quando voltou da horta acompanhada pelos pais foi a última vez que entraram naquela casa.