PPP, a Propriedade Paradigmática do Presente
Sabemos que a zona de Campanhã está na mira de grandes investimentos privados e é já palco da construção de grandes infra-estruturas urbanas. Isto significa que os terrenos do Bairro S. Vicente de Paulo estão a ser avaliados num momento em que o seu valor está ainda muito aquém do valor que atingirá num futuro próximo. Será justo que a Câmara negoceie assim em nome dos portuenses?
Em 2007, os moradores do Bairro S. Vicente de Paulo, em Campanhã, foram expulsos das suas casas para que fosse realizada a demolição do complexo habitacional que abrigava centenas de famílias há várias gerações, dispersando-as pelo território. Em 2020, a Câmara Municipal do Porto anunciou que o terreno, desocupado desde a demolição, seria objecto de uma Parceria Público-Privada (PPP) para a construção de 232 habitações, para dar resposta à recente escassez de oferta para a classe média. Em 2021, com o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), porque não repensar estas escolhas? Já lá vamos.
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Em 2007, os moradores do Bairro S. Vicente de Paulo, em Campanhã, foram expulsos das suas casas para que fosse realizada a demolição do complexo habitacional que abrigava centenas de famílias há várias gerações, dispersando-as pelo território. Em 2020, a Câmara Municipal do Porto anunciou que o terreno, desocupado desde a demolição, seria objecto de uma Parceria Público-Privada (PPP) para a construção de 232 habitações, para dar resposta à recente escassez de oferta para a classe média. Em 2021, com o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), porque não repensar estas escolhas? Já lá vamos.
Os termos da parceria em curso são os seguintes: o investidor privado vencedor do concurso construirá 232 fogos, sendo que 116 ficarão na posse da Câmara para serem explorados no regime de renda acessível e os restantes 116 ficarão no domínio privado e poderão ser vendidos ou explorados no regime de rendas livres. Em contrapartida pelo investimento na construção, o promotor receberá também a propriedade de quatro terrenos no Plano de Pormenor das Antas, com capacidade construtiva para mais 120 fogos. Esta parceria consiste, portanto, na potencial construção de cerca de 350 apartamentos, dos quais somente 116, um terço do total, permanecerão no domínio público.
Se as premissas iniciais deste acordo já denotam um certo desequilíbrio em relação àquilo que se espera de uma parceria, podemos fazer ainda mais algumas considerações para perceber como a balança pende ainda mais para um dos lados. Sabemos que a zona de Campanhã está na mira de grandes investimentos privados e é já palco da construção de grandes infra-estruturas urbanas – com o centro cultural no antigo Matadouro, o Intermodal de Campanhã e a requalificação da Praça da Corujeira. Isto significa que os terrenos estão a ser avaliados num momento em que o seu valor está ainda muito aquém do valor que atingirá num futuro próximo. Será justo que a Câmara negoceie assim em nome dos portuenses?
Se considerarmos o valor de construção por metro quadrado indicado no concurso vemos que o custo total da construção dos potenciais 350 fogos andará próximo dos 50 milhões de euros. Considerando os valores de venda imobiliária de gama média para os apartamentos do Monte da Bela e os valores de venda imobiliária de gama alta para os apartamentos nas Antas, chegamos a um valor de venda de cerca de 170 milhões de euros, representando uma taxa de lucro de cerca de 240%. Repetimos que este lucro só é possível porque foram expulsos os moradores e demolido o bairro, mas continuando... Esta é uma estimativa conservadora, especialmente porque podemos extrapolar ainda mais esses valores se considerarmos as taxas anuais de crescimento do valor de venda imobiliária na região. Em Campanhã, os últimos quatro anos apresentaram uma taxa de crescimento média de 17%. Se aplicarmos essa taxa aos próximos quatro anos, período previsto para a conclusão da empreitada, veremos que a taxa de lucro sobe para os 550%.
Tendo em vista o contexto em que esta PPP surgiu é importante fazermos um balanço histórico e crítico deste modelo de construção de cidade.
As PPP são uma modalidade de gestão do património público que passou a ser adoptada nos mais diversos países a partir dos anos 80, uma década marcada pelas medidas político-económicas impostas pelo Consenso de Washington - como a imposição de austeridade fiscal, privatizações, abertura comercial e ajustes fiscais.
Apesar dessas parcerias serem utilizadas em campos bastante díspares, desde o planeamento urbano até à saúde, o denominador comum entre elas é a teoria de onde emergem: de que a iniciativa privada assegura, através do mercado, os direitos que um Estado enfraquecido não consegue defender. Na prática, entretanto, vemos que estas parcerias resultam negativamente para a maioria da população por dois motivos: o desmantelamento do Estado de Bem Estar e de todos os direitos que ele veio assegurar, e a consequente transformação desses direitos em mercadoria, negando o acesso a quem não consegue pagar. Ao mesmo tempo que se popularizou esta estratégia, políticas de austeridade começaram a ser aplicadas e crises económicas passaram a ser cada vez mais frequentes, aumentando ainda mais o abismo entre quem pode pagar e quem não pode.
Apesar de constituir efectivamente uma parceria, é importante deixar claro que não são uma parceria em que através do “dinamismo e inovação” da iniciativa privada ficam assegurados deveres do Estado, mas sim uma parceria em que através da autoridade e dos poderes do Estado são assegurados os lucros aos investidores privados. É nesse contexto que surge o projecto da PPP do Monte da Bela, após um longo período de pausa entre a expulsão dos moradores e a demolição de centenas de habitações públicas é anunciada a construção de novas habitações, desta vez voltadas para a classe média. Através de discursos de renovação urbana e da apologia das rendas acessíveis varre-se para debaixo do tapete a camada da população que foi expulsa e proclama-se o aumento do parque público para a suposta classe média.
É de acrescentar, principalmente, que as 232 habitações poderiam ser construídas com dinheiro do PRR, aprovado recentemente, onde está previsto o financiamento a 100% quando as habitações se destinem a “arrendamento apoiado, renda condicionada e rendas reduzidas por efeito de programas especiais”. Isto quer dizer que, sem despesa municipal, todas as habitações construídas poderiam ser públicas, com rendas calculadas em função dos rendimentos das famílias que mais necessitam, e consagrar ainda o direito de preferência dos antigos moradores do Bairro S. Vicente de Paulo. A revisão da estratégia para estes terrenos e a construção de mais habitação pública tem de estar em cima da mesa! No entanto, fica claro que o executivo municipal continua a não colocar a maioria dos portuenses no topo das suas prioridades perpetuando a sua invisibilização, tendo um papel activo na especulação imobiliária e não tendo coragem de apontar esta bazuca para a resolução de problemas estruturais.