Os Beatles de Jackson e os censurados “a Bem da Nação”

Saberão aqueles que se aprontam para ver Get Back que o antigo Let It Be esteve à beira de ser proibido nos cinemas de Portugal?

Começa esta quinta-feira, 25 de Novembro, a emissão mundial da série que o cineasta neozelandês Peter Jackson (O Senhor dos Anéis, O Hobbit) construiu a partir das cerca das 56 horas de filmagens dos ensaios dos Beatles em Janeiro de 1969, que deram origem a um filme (Let It Be, de Michael Lindsay-Hogg) e também ao seu fim enquanto grupo. Além do material filmado, Jackson (que foi contratado pelos antigos beatles Ringo Starr, McCartney e as viúvas de Lennon e Harrison para desempenhar esta função) contou ainda com 140 horas de gravações áudio, registadas com equipamentos Nagra. E assim se transformou Let It Be em Get Back, seis horas, três episódios.

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Começa esta quinta-feira, 25 de Novembro, a emissão mundial da série que o cineasta neozelandês Peter Jackson (O Senhor dos Anéis, O Hobbit) construiu a partir das cerca das 56 horas de filmagens dos ensaios dos Beatles em Janeiro de 1969, que deram origem a um filme (Let It Be, de Michael Lindsay-Hogg) e também ao seu fim enquanto grupo. Além do material filmado, Jackson (que foi contratado pelos antigos beatles Ringo Starr, McCartney e as viúvas de Lennon e Harrison para desempenhar esta função) contou ainda com 140 horas de gravações áudio, registadas com equipamentos Nagra. E assim se transformou Let It Be em Get Back, seis horas, três episódios.

Mas saberão aqueles que se aprontam para ver Get Back no Disney+ que o antigo Let It Be esteve à beira de ser proibido nos cinemas de Portugal? E que os outros filmes dos Beatles, ou aqueles a que surgiram ligados (participando como actores ou compondo músicas), somam um rol de peripécias com o lápis azul e as tesouras da censura, até que o 25 de Abril a extinguiu? Quem estiver interessado nesta história, elucidativa de tempos que alguns fingem esquecer, tem um precioso guia no livro Os Beatles e a Censura em Portugal (Âncora, 2020, com reedição aumentada e actualizada em Agosto de 2021), de Abel Soares da Rosa, também autor de outros livros sobre os quatro de Liverpool: The Beatles, Discografia Portuguesa a 45 RPM (2010), Os Beatles Ilustrados, Os Beatles na Imprensa Portuguesa 1963-1972 (Vol. 1, 2013 e Vol. 2, 2014) e Os Beatles Populares, Os Beatles na Imprensa Portuguesa 1963-1970 – Jornais (2015).

Nasceu de uma pergunta e depressa se tornou um trabalho de detective. A pergunta, vinda de Londres, e ainda por cima da parte de Mark Lewisohn, um dos maiores especialistas nos Beatles (e a braços com uma volumosa trilogia sobre eles, de que já foi publicado em 2013 o primeiro volume, All These Years Volume One – Tune In), era esta: o primeiro filme dos Beatles, A Hard Day’s Night, tinha sido proibido em Portugal a menores de 17 anos? E alvo de cortes? Havia duas notícias de jornais britânicos de 1964 a afirmá-lo e ele queria saber se era verdade. Sim, era verdade, confirmou Abel Rosa: o filme fora estreado em Portugal com essa restrição, em 1965, quando em todo o mundo foi classificado para maiores de 6 anos. Um mês depois da estreia, a censura recuou, alterando a classificação para maiores de 12. Mas teria havido cortes? E quais?

Aí começou a busca, que havia de conduzi-lo à Torre do Tombo, seguindo pistas que lhe deram Lauro António (que assina um dos prefácios do livro, o outro é de Rui Zink) e Manuel Mozos. E pôde fazer a história, não apenas do tortuoso percurso de A Hard Day’s Night nas malhas da censura, mas também dos restantes filmes dos Beatles. Estreado em Inglaterra em 6 de Julho de 1964, esse primeiro filme, que por cá levou o título de Os Quatro Cabeleiras do Após-Calypso, só teve estreia comercial quase um ano depois, no Cinema São Jorge, em 11 de Março de 1965, mas como filme para adultos, maiores de 17 anos. Um mês depois, a fasquia baixou para 12, mas isso não evitou que fosse “um desastre de bilheteira”; os jovens tinham sido afastados dele. Era isso, aliás, que o regime queria, como se lê no relatório dos censores: o filme em si, diziam, não era problema, desde que “com alguns cortes”; o problema era outro: “Não podemos esquecer, porém, quem são os intervenientes no filme, a onda de ‘histerismo’ que têm desencadeado entre a juventude de toda a Europa, doença de que, na medida do possível, temos de defender a nossa juventude, guardada para tarefas mais árduas” – a guerra colonial, como bem observa Abel Rosa.

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Capa do livro e cartaz (nele reproduzido) a anunciar o primeiro filme dos Beatles

Help!, o filme seguinte, estreou-se para maiores de 12 anos “quase dois anos após o início da exibição mundial” e com uma cena cortada: a de uma dança do ventre num restaurante, ao lado de McCartney. Yellow Submarine, estreado mundialmente em Julho de 1968, escapou: aprovado para maiores de 12, estreou-se em Julho de 1970 sem cortes. Abel Rosa escreve: “Não deixa de ser surpreendente, pois, embora de animação, tinha diálogos que em situação normal não passariam numa censura atenta… felizmente que nem sempre o era.” Por fim, Let It Be (1970) aqui baptizado como Improviso, esteve a um passo de ser proibido: alegando “a histeria” que os Beatles e a sua música “costumam provocar nas plateias”, os censores propunham que se ponderasse “da conveniência ou não, de ser autorizado o ‘filme’.” Mas passou, para 12 anos. A mesma sorte não teve Woodstock, que (como lembra o livro) foi proibido, só se estreando em 1975. “A Bem da Nação”, ditavam os relatórios. Até se finarem os nossos “Blue Meanies” caseiros.