Reabriu-se a porta para 2500 anos da História de Lisboa no subsolo da Baixa
No Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros há vestígios fenícios, romanos, islâmicos, medievais, pré e pós-pombalinos. Classificado como Monumento Nacional desde 2015, reabre ao público com uma nova museologia que ajuda a contar 2500 anos de Lisboa.
Há 2500 anos, o rio Tejo entrava pela terra adentro até perto do que é hoje o Rossio e a Baixa era uma enseada onde aportavam barcos de locais distantes. Na margem oriental, quase à beira de água, ergueu-se então um bairro para os colonos fenícios. Tinha casas rudimentares com paredes de taipa, telhados de ramos ou troncos e uma lareira circular ao centro.
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Há 2500 anos, o rio Tejo entrava pela terra adentro até perto do que é hoje o Rossio e a Baixa era uma enseada onde aportavam barcos de locais distantes. Na margem oriental, quase à beira de água, ergueu-se então um bairro para os colonos fenícios. Tinha casas rudimentares com paredes de taipa, telhados de ramos ou troncos e uma lareira circular ao centro.
Assim nasceu Olisipo, um povoado grande e populoso virado para o comércio, a pesca e a agricultura que prosperou durante quatro séculos. Os vestígios de duas casas desse período estão no subsolo da Lisboa contemporânea. Também por lá se encontravam numerosos objectos da época, como o pequeno fragmento cerâmico em que figura um hippos, o barco fenício para a navegação costeira.
Pode não ser exactamente a peça mais antiga, mas a perfeição do desenho faz deste um dos vestígios mais simbólicos do Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros (NARC). Tanto que o logótipo do espaço é esse fragmento, que cabe na palma da mão, e que a partir desta quarta-feira fica novamente à vista de lisboetas e turistas. Dois anos depois de ter fechado para uma remodelação profunda, o núcleo reabre com uma nova museografia que pretende aproximá-lo do grande público.
“Não há nada em Lisboa que se compare, ou até em Portugal”, assegura António Monteiro, presidente da Fundação Millennium BCP. É na base do edifício do banco que se situa o NARC, escavado entre 1991 e 1995 e desde então aberto a visitas – mas agora equipado com placas informativas, ecrãs e projecções em vídeo que ajudam a conhecer dois milénios e meio da História lisboeta. É que neste espaço, apesar de relativamente pequeno, sobrepõem-se as camadas e o visitante está constantemente a saltitar entre épocas.
Rita Salomé, que faz a visita guiada ao PÚBLICO, explica que após a presença fenícia houve um período em que o local não teve ocupação humana e transformou-se novamente em praia fluvial. Só por volta do ano 30 a.C. se encontram novos sinais de vida. Neste caso, de morte. “Os romanos ocupam esta área com um cemitério”, diz.
Nos trabalhos arqueológicos foram encontrados esqueletos de crianças e adultos, uma urna com cinzas e quatro zonas para a cremação de corpos. Nada disso está fisicamente presente no NARC, onde apenas se distinguem as edificações que sobreviveram ao passar do tempo. São as projecções digitais, desenvolvidas pela empresa portuguesa Edigma e pelo atelier alemão Brückner, que ajudam a imaginar esse passado longínquo, como antes já tinham ilustrado a vivência na Lisboa da Idade do Ferro.
“Tínhamos de fazer uma renovação”, comenta António Monteiro. “Tínhamos de recorrer a técnicas mais modernas e o que se fez no NARC corresponde às melhores técnicas disponíveis”, acredita.
Camadas de História
A Rua dos Correeiros foi simultaneamente um sítio muito ocupado e muito abandonado. Depois de fazerem dele um cemitério, os romanos deixaram de o utilizar. Por volta do ano 50 “volta a ser ocupado, desta vez por um complexo fabril de preparados piscícolas”, diz Rita Salomé. Na Alta Idade Média ainda terá utilização, mas sofre novo período de abandono mais tarde, até que a cidade entra no período de dominação islâmica. Desde então até hoje, passando pela conquista cristã, pelos Descobrimentos, pelo terramoto de 1755 e pela reconstrução pombalina, o local não mais deixou de ter presença humana – e há vestígios de todas essas épocas no NARC.
Os mais significativos são os do período romano. Está bem identificada a zona fabril, com os seus tanques de arestas arredondadas, onde se produziam molhos e conservas de peixe que eram exportados para todo o Império Romano. “Temos almofarizes, panelas, os mais diversos objectos. O processo levava quase um mês”, explica Rita Salomé. “Este tanque foi reutilizado em período islâmico como silo. Encontrámos vestígios de figos secos, uvas-passas e ameixas.”
Ao lado da fábrica existia “um espaço talvez residencial”, em que se distinguem um balneário e mosaicos. “Este mosaico foi um dos primeiros a ser encontrado na cidade”, sublinha Rita. “Como temos um espaço com água e salitre, ele estava a precisar de uma intervenção. Foi preciso removê-lo, consolidá-lo, tratá-lo em laboratório e recolocá-lo”, explica, salientando a complexidade desse processo.
No NARC é ainda possível ver estacas de madeira pombalinas no seu estado natural (banhadas pela água do rio), um painel de azulejos do século XV, duas imagens decapitadas de Santo António (pós-1755) e uma colecção de ânforas, potes e vasos de diferentes cronologias. “Gente interessada na História de Lisboa tem aqui uma grande oportunidade de aprender”, diz António Monteiro.