Décadas de abusos em missões de paz da ONU

Relatórios sobre violações e exploração sexual de crianças e jovens na Bósnia, no Haiti ou na República Centro-Africana revelaram um “padrão crónico e arraigado” de abusos. As regras foram apertadas, mas os escândalos continuam a manchar as missões de paz da ONU.

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Um dos escândalos aconteceu durante a missão no Haiti após o terramoto de 2010 Reuters/STR

O envolvimento de militares portugueses ao serviço das Nações Unidas numa rede de tráfico de droga, ouro e diamantes na República Centro-Africana, noticiado esta segunda-feira, é um cenário atípico numa longa lista de abusos cometidos por capacetes azuis onde se destacam os crimes de violência e exploração sexual.

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O envolvimento de militares portugueses ao serviço das Nações Unidas numa rede de tráfico de droga, ouro e diamantes na República Centro-Africana, noticiado esta segunda-feira, é um cenário atípico numa longa lista de abusos cometidos por capacetes azuis onde se destacam os crimes de violência e exploração sexual.

A série de escândalos que envolvem militares de vários países — e também civis ao serviço de organizações humanitárias internacionais — teve o seu primeiro capítulo há duas décadas, com as denúncias de extorsão sexual e outros abusos de mulheres e crianças na Bósnia, Serra Leoa, Guiné e Libéria.

Em todos os casos, dezenas de funcionários ao serviço da ONU, incluindo civis, militares e polícias, foram acusados de usarem mulheres e crianças como prostitutas e escravas sexuais.

Num relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados e da organização Save the Children, publicado em 2002, pelo menos 70 pessoas ligadas à ONU foram acusadas de obrigarem crianças e mulheres refugiadas a terem relações sexuais em troca de comida.

No relatório, publicado há quase 20 anos, ficou claro que os crimes cometidos nos países africanos resultavam de “um padrão crónico e arraigado” de exploração sexual às mãos de trabalhadores humanitários. O então secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, prometeu tolerância zero em futuros casos semelhantes.

Desde essa altura, a ONU tem vindo a apertar as regras de funcionamento das suas missões de manutenção de paz, e as exigências feitas aos trabalhadores civis são extensíveis a militares e polícias. Em 2004, foram criadas Unidades de Conduta e Disciplina em oito missões internacionais, e surgiram as primeiras demissões na sequência de denúncias de abuso e exploração sexual na República Democrática do Congo.

Mas o escândalo da exploração sexual de nove crianças por 134 soldados do Sri Lanka, no Haiti, entre 2004 e 2007, pôs em causa as promessas de tolerância zero por parte da ONU. E também confirmou que a punição pelos crimes, num sistema em que cada país é responsável pelos seus próprios contingentes, é uma tarefa ainda mais complicada do que impedir que os crimes aconteçam — 114 soldados foram enviados de volta para o Sri Lanka, mas nenhum deles foi acusado e levado a julgamento.

Nos últimos anos, novos escândalos na República Centro Africana e no Congo levaram a ONU a declarar que os abusos sexuais são “um cancro no sistema” das missões humanitárias. 

E, em 2016, o responsável da ONU que denunciou as violações de dezenas de raparigas e mulheres na República Democrática do Congo, o sueco Anders Kompass, demitiu-se por considerar que não existem condições para que a organização possa oferecer às vítimas um processo de denúncias confidencial e independente.