PS e BE lembram Marcelo que AR aprovou eutanásia por “maioria clara” e que TC não disse que a vida humana é inviolável

Deputados reapreciaram veto do Presidente ao decreto da legalização da eutanásia. Aprovação na sexta-feira continua garantida. Direita critica timing e falta de informação aos deputados.

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A socialista Isabel Moreira coordenou a elaboração do novo texto sobre a legalização da morte medicamente assistida Nuno Ferreira Santos

Os partidos que pretendem aprovar a legalização da morte medicamente assistida defendem que, no novo texto que apresentaram ao Parlamento, responderam a todas as dúvidas do Tribunal Constitucional, e lembram ao Presidente da República que o diploma fora já em Janeiro aprovado por uma “maioria clara” e que os juízes não encontraram qualquer “inconstitucionalidade de princípio na despenalização”.

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Os partidos que pretendem aprovar a legalização da morte medicamente assistida defendem que, no novo texto que apresentaram ao Parlamento, responderam a todas as dúvidas do Tribunal Constitucional, e lembram ao Presidente da República que o diploma fora já em Janeiro aprovado por uma “maioria clara” e que os juízes não encontraram qualquer “inconstitucionalidade de princípio na despenalização”.

No plenário desta quinta-feira à tarde, quando se fez a reapreciação do veto de Marcelo Rebelo de Sousa ao decreto da eutanásia, a direita insurgiu-se principalmente contra o timing da discussão do assunto, na “25.ª hora” da Assembleia da República, quando a sua dissolução já está anunciada, e criticou a falta de consulta a entidades das áreas da ética e da saúde, assim como a disponibilização tardia do novo texto.

Nas galerias, um grupo de meia centena de activistas pela vida, completamente vestidos de preto, assistiu ao debate e, no final, ficou de pé durante uns minutos em silêncio, como forma de protesto. Ferro Rodrigues nem reparou.

Isabel Moreira, que coordenou o trabalho da redacção dos novos artigos propostos para suprir as inconstitucionalidades da falta de determinação do conceito de “lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico”, argumentou que o diploma “foi aprovado pela esmagadora maioria do povo português” em Janeiro, numa referência ao facto de PS, BE, PAN, PEV e IL (que fizeram projectos de lei) perfazerem maioria no Parlamento. Defendeu que a questão já foi alvo “de longo debate” durante décadas na sociedade, e, à crítica de que não houve audição de qualquer entidade para a nova versão, a deputada socialista respondeu: “A entidade que tivemos que escutar foi o Tribunal Constitucional.”

A deputada vincou que o TC, apesar de ter ido além do que lhe foi pedido pelo Presidente, “fez questão de afastar” a ideia de que a eutanásia possa pôr em causa o princípio da inviolabilidade da vida humana. No acórdão, os juízes consideraram que a inviolabilidade da vida humana consagrada na Constituição “não constitui obstáculo inultrapassável” para se despenalizar, em certas condições, a antecipação da morte medicamente assistida.

Os mesmos argumentos foram usados por José Manuel Pureza. “O TC declarou, de forma inequívoca, que não há nenhuma inconstitucionalidade de princípio na despenalização”, afirmou o deputado do BE, acrescentando que o Constitucional “foi claro” dizendo ser “legítimo” que a morte assistida seja despenalizada “em circunstâncias muito delimitadas”.

Por isso, defendeu, os partidos seguiram os caminhos apontados pelo TC para colocar na lei conceitos “o mais precisos e menos indeterminados possível”, com “responsabilidade e ponderação”. O resultado, vincou, foi uma lei que “combine prudência com determinação, tolerância com rigor, que não obrigue ninguém a ir contra a sua vontade e que permita não forçar ninguém a ter uma morte que violente grosseiramente as exigências de dignidade”. Como que em jeito de recado para Belém, José Manuel Pureza salientou: “Fica ultrapassada a motivação constitucional que foi a única que fundamentou o veto presidencial (…) deixa agora de haver quaisquer obstáculos à sua plena adopção.”

PEV lamenta acesso dos sectores privado e social à eutanásia

O ecologista José Luís Ferreira puxou dos mesmos argumentos e citou o acórdão: “O direito a viver não pode transfigurar-se num dever de viver em quaisquer circunstâncias”, o que significa que “em situações de sofrimento limite pode haver soluções legislativas”.

O deputado do PEV lamentou, no entanto, que o texto não inclua a sua proposta de que a eutanásia só seja possível no SNS como “forma de garantir que a morte medicamente assistida não se tornasse num factor de negócio”. E defendeu que “esta lei em nada pode contribuir para reduzir, aligeirar ou desresponsabilizar o Estado do seu dever de garantir o acesso dos doentes aos cuidados paliativos e a uma boa rede de cuidados continuados”.

“A decisão do fim da vida deve ser nossa porque a vida é aquilo que fazemos de forma livre, informada e consciente. As decisões sobre lutas e desfechos são nossas. Até ao último momento ninguém devia poder decidir a nossa vida por nós”, defendeu João Cotrim de Figueiredo (IL). “A existência de uma vida digna tem que ter a defesa de uma morte igualmente digna”, vincou a deputada Joacine Katar Moreira, que acrescentou que a legalização da eutanásia se faz também pela “liberdade humana e pela dignidade que todos os indivíduos merecem”. E Cristina Rodrigues defendeu que “é sempre oportuno discutir direitos humanos” e formas de “dar resposta aos que sofrem de forma intolerável”. “Não é uma questão de vida ou de morte; é de liberdade.”

“Este decreto deixa bem clara a possibilidade de revogação do pedido em qualquer momento do processo”, realçou, por seu lado, a deputada do PAN Bebiana Cunha. “Garante uma avaliação sistemática da vontade do ou da doente em todos os momentos, a pessoa terá toda a informação sobre as alternativas existentes, nomeadamente de cuidados paliativos e continuados. É dever do Estado garantir que estas respostas existem; é dever da lei garantir que as pessoas têm direito a decidir quando se encontram nas condições” para pedir a eutanásia.

PSD critica debate “de afogadilho”

À direita, o PSD, que dará liberdade de voto aos seus 79 deputados, concentrou-se em criticar o timing da discussão e votação (nesta sexta-feira) e o facto de as alterações só terem chegado aos partidos há dois dias. Recordou que os partidos que agora as propõem demoraram 230 dias para dar resposta ao veto de Março e fazem-no “agora, na 25.ª hora, no momento em que está à vista o fim da actual legislatura”. Porque, defendeu Adão Silva, era preciso “redobrar a prudência, serenidade e rigor” num assunto “complexo, delicado, socialmente convulsivo e temerário”.

O presidente da bancada do PSD, que é favor da eutanásia, apontou o dedo aos partidos, culpando-os se o processo cair porque “nunca quiseram avançar” durante sete meses e tudo terá que recomeçar na próxima legislatura. “Não será imprudente, também do ponto de vista da reputação do Parlamento, estarmos a legislar sobre esta matéria num frenesim de última hora? Este debate sobre a eutanásia não pode ser feito de afogadilho.”

André Ventura prometeu que se o Chega “tiver força na próxima legislatura” reverterá esta legislação se ela for promulgada pelo Presidente, e criticou a aprovação “às três pancadas” e as promessas não cumpridas pelo Governo de reforço dos cuidados paliativos.

Telmo Correia, do CDS, lamentou a “falta de bom senso” de todo o processo e a falta de tempo dos deputados para analisarem o texto e poderem votar “em consciência” e acusou os partidos de estarem a insistir num tema que nem sequer colocaram nos programas eleitorais e por terem recusado a pronúncia do povo português em referendo.

PCP: “O dever do Estado é garantir que a morte seja sempre assistida, mas não antecipada”

O PCP, que mantém o voto contra, defendeu que o debate sobre a eutanásia não é sobre “quem preza a dignidade da vida humana e quem a desvaloriza”, nem sobre a “dignidade individual”. E fazê-lo neste momento “não põe em causa a legitimidade inatacável da AR para decidir sobre esta matéria” porque o Parlamento “está em plenitude de funções e não se trata de novo processo legislativo”, afirmou o deputado António Filipe.

“O que se discute é a questão de saber se um Estado que nega a muitos cidadãos os meios para viver dignamente lhes deve oferecer os meios legais para antecipar a morte”, apontou. “A criação de uma rede de cuidados paliativos com carácter universal tem de ser uma prioridade absoluta (…) um país não deve criar instrumentos legais para ajudar a morrer quando não garante condições materiais para ajudar a viver.” António Filipe defendeu ainda que “o dever do Estado é garantir que a morte seja sempre assistida, mas não que seja antecipada” e que a legalização da eutanásia ajudará à relativização do valor da vida humana.