Jesus é o cão
Também já me aconteceu surpreender o Jesus num comportamento muito pouco católico com outra cadela e tentar a todo o custo que ele parasse com aquilo. Dei por mim aos gritos no meio do parque: “Jesus, Jesus!”
O meu cão chama-se Jesus. Não participei na escolha do nome, quando o conheci já estava baptizado. Um amigo e o meu namorado é que o denominaram assim e, sendo os seus apelidos, respectivamente, Cruz e Luz, a combinação parecia funcionar. Jesus Cruz tem um impacto que não carece de explicação, e Jesus Luz também é simbólico, para além de ser o nome de um DJ brasileiro que namorou com a Madonna. Eu gostei. Gostei de não ter sido eu a dar o nome, ilibando-me assim dos olhares mais ofendidos de alguns beatos que lhe dão festinhas na rua, mas, acima de tudo, gostei muito do nome. Achei que estava ali congregado o magnificente e o prosaico, o sagrado e o profano. Chamando-me Maria Madalena, estava montado o Evangelho.
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O meu cão chama-se Jesus. Não participei na escolha do nome, quando o conheci já estava baptizado. Um amigo e o meu namorado é que o denominaram assim e, sendo os seus apelidos, respectivamente, Cruz e Luz, a combinação parecia funcionar. Jesus Cruz tem um impacto que não carece de explicação, e Jesus Luz também é simbólico, para além de ser o nome de um DJ brasileiro que namorou com a Madonna. Eu gostei. Gostei de não ter sido eu a dar o nome, ilibando-me assim dos olhares mais ofendidos de alguns beatos que lhe dão festinhas na rua, mas, acima de tudo, gostei muito do nome. Achei que estava ali congregado o magnificente e o prosaico, o sagrado e o profano. Chamando-me Maria Madalena, estava montado o Evangelho.
Importa dizer que o Jesus é um Grand Danois, sempre esteve mais para pónei do que para cão e, digamos que não fomos uns donos muito firmes na fase inicial, ou seja, sempre foi mais ele a passear-nos do que o contrário.
Um dia, numa esplanada de uma pastelaria em Arroios, enquanto eu comia uma torrada e uma meia de leite, com a trela do Jesus, que ainda era bebé (mas já enorme) presa à perna da mesa, uma senhora, sentada umas mesas ao lado, desalentada, expele o sonoro desabafo: “Ai, Jesus!” Em vez de obter o socorro divino ou o consolo instantâneo que advém de suspirar o nome de Cristo, o efeito gerado foi o de uma balbúrdia desvairada. A mesa arrastou-se num chinfrim, o Jesus lançou-se na sua sofreguidão canina ao colo da pobre velha, ela sem nada entender, todo o café num alvoroço, os copos partiram-se, eu a fazer uso da minha parca força para procurar domar a fera que nada mais fez do que acorrer ao chamamento que ainda há pouco tempo tinha obedientemente assimilado. A senhora aos gritos, pessoas a socorrer, eu com os joelhos esfolados, um caos autêntico. Talvez a senhora tenha aprendido da pior maneira a não usar mais o nome do Senhor em vão.
Vivíamos com amigos, nessa época, numa espécie de comunidade improvisada, e um deles tinha um filho de três anos, o Quico. O Jesus era de todos nós, o nosso fiel companheiro, o nosso Scooby Doo, comparação que lhe assenta bem, até porque é da mesma raça. Como é normal, a criança tinha por ele especial afeição. O Quico andava num colégio católico e, um dia, chegou a casa um tanto baralhado e desconfiado, como que a exigir uma explicação: “Pai, hoje fomos visitar a casa do Jesus. Ele tem uma casa enorme.” O pai não percebeu de imediato, mas veio a saber que ele tinha ido com a escola visitar uma igreja que disseram às crianças ser “a casa de Jesus.” Ora, a confusão do Quico era justificada: Mas por que raio é que o Jesus, tendo uma casa tão grande, quase um palácio, estava ali encafuado connosco num T3? Por que é que passava tão pouco tempo em casa dele e estava sempre ali metido? Onde há Jesus, há mistério.
Já dei por mim a tentar estabelecer paralelos. As comparações entre quaisquer elementos podem forçar-se, é certo, mas eu juro que consigo vislumbrar, assim como no poema de Matilde Rosa Araújo no: “Meu cão, seus olhos castanhos, tamanhos de compreensão”, um olhar de uma abnegação e bonomia que, não sei se por coincidência do nome, me lembra o olhar terno e sofrido de Jesus.
Também já me aconteceu surpreender o Jesus num comportamento muito pouco católico com outra cadela e tentar a todo o custo que ele parasse com aquilo. Dei por mim aos gritos no meio do parque: “Jesus, Jesus!”, aumentando a intensidade da voz, ao perceber o pouco resultado que estavam a ter as minhas ordens no impedimento da cópula. Estou eu nesta gritaria, quando reparo que me observa um casal com uma expressão um tanto intimidada. Com medo que me julgassem uma puritana que, perante o prazer canino alheio, qual exorcista a espalhar água benta, desatava a invocar o nome do Senhor, apressei-me a justificar-me. Não fiz a associação imediata entre a frase que lemos na fachada de tantas igrejas evangélicas “Jesus Cristo é o Senhor” e a que proferi, mas saiu-me assim mesmo: “Jesus é o cão!”