Num planeta mais quente, o risco de doenças vindas dos animais é maior

As alterações climáticas possibilitam a expansão de espécies que são vectores de doenças e que podem transmitir novos agentes patogénicos aos humanos.

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Vista aérea de uma zona desflorestada na Amazónia Bruno Domingos/Reuters

28 de Outubro de 2021 – sim, referimo-nos mesmo ao dia de hoje. Neste preciso dia, o mundo está a viver uma pandemia que já causou cerca de cinco milhões de mortes. Grandes cidades entraram em confinamento, sistemas de saúde ficaram sobrecarregados e muitos dos nossos hábitos mais banais estiveram em pausa durante algum tempo. Tudo isto por causa de um vírus. Ao mesmo tempo, pululam as notícias sobre as causas e efeitos na Terra das alterações climáticas causadas pelos humanos: são os relatórios sobre o aumento das temperaturas globais, a extinção (ou quase) de algumas espécies, ou o desbravamento de florestas.

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28 de Outubro de 2021 – sim, referimo-nos mesmo ao dia de hoje. Neste preciso dia, o mundo está a viver uma pandemia que já causou cerca de cinco milhões de mortes. Grandes cidades entraram em confinamento, sistemas de saúde ficaram sobrecarregados e muitos dos nossos hábitos mais banais estiveram em pausa durante algum tempo. Tudo isto por causa de um vírus. Ao mesmo tempo, pululam as notícias sobre as causas e efeitos na Terra das alterações climáticas causadas pelos humanos: são os relatórios sobre o aumento das temperaturas globais, a extinção (ou quase) de algumas espécies, ou o desbravamento de florestas.

A questão torna-se imperiosa: as alterações climáticas estão a tornar as doenças infecciosas mais frequentes e a aumentar a sua expansão? Simplificando a complexa resposta, o aumento das temperaturas associado a alterações climáticas faz subir a probabilidade do aparecimento e expansão de doenças infecciosas e infecções transmitidas aos humanos por animais (zoonoses) – algumas delas com possíveis grandes impactos na humanidade.

Nas vésperas da Conferência sobre Alterações Climáticas (COP26) que se realiza em Glasgow, na Escócia, pedimos a alguns cientistas para nos explicarem com mais detalhe essa ligação. O biólogo Jorge Palmeirim começa por esclarecer que as alterações climáticas que estamos a viver têm por base um aumento da temperatura global. Ora, sabe-se que temperaturas mais altas são favoráveis a um maior número de espécies emissoras de zoonoses, como os mosquitos – quanto mais elevada a temperatura, mais adequado será o meio para esses insectos.

“Se houver um aumento global da temperatura, à partida haverá uma expansão de algumas espécies de mosquitos que estão nas zonas tropicais para as temperadas, que vão aquecer”, indica o coordenador do grupo de Biodiversidade Tropical e Mediterrânica no Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais (cE3c) da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. “O aquecimento global permite uma expansão de espécies que são vectores de doenças, isto é, que transmitem agentes patogénicos ao homem.”

Jorge Palmeirim pormenoriza que a temperatura afecta as zoonoses a dois níveis: primeiro, aumenta a distribuição de alguns vectores de doenças; depois, as temperaturas elevadas favorecem um maior número de agentes patogénicos que causam zoonoses. “Não só passamos a ter mais vectores como o ambiente começa a ser mais favorável a agentes patogénicos e a mais doenças”, resume. “Com o aumento global da temperatura, estamos a aumentar muito a probabilidade da expansão de zoonoses.”

Misturar tudo no mesmo caldeirão

De forma geral, as alterações climáticas podem provocar uma alteração na distribuição dos ecossistemas e, consequentemente, da disposição das espécies. “Ao aquecermos o mundo, haverá temperaturas mais elevadas e os ecossistemas vão alterar-se”, assinala Jorge Palmeirim. Haverá assim uma migração dos ecossistemas para novas zonas, o que levará a novas misturas de espécies. Espécies que não têm estado em contacto passam a conviver.

O biólogo exemplifica: se vier um novo periquito para a Europa (o que já está a acontecer), entrará em contacto com as nossas espécies de aves. Se esse periquito vier com certos agentes patogénicos, pode passá-los às espécies de aves que já estão no continente europeu. “Estas novas misturas de espécies selvagens podem resultar em novas oportunidades de saltos de agentes patogénicos entre espécies selvagens e as domésticas. Estamos a meter no mesmo caldeirão muitas espécies e a misturar tudo”, ilustra. “Ao possibilitar que nesse caldeirão agentes patogénicos saltem de espécie para espécie, estamos a abrir novos cozinhados de espécies e que podem vir a saltar para nós também.”

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Zonas de fronteira tornam-se mais propensas à transmissão de agentes patogénicos de espécies selvagens para as domésticas Unsplash

Mas podem acontecer mais experiências nesse caldeirão: sempre que se adiciona um agente patogénico a uma nova espécie – seja doméstica ou selvagem –, o vírus pode evoluir e adaptar-se a novos ambientes. “Cada vez que há uma evolução de um vírus, há uma nova oportunidade para ele ser mais transmissível para o homem.”

Em toda esta perigosa receita, há ainda que reforçar a contribuição da destruição de habitats. Quando se destroem ecossistemas nas florestas tropicais – como através da desflorestação –, cria-se uma zona de fronteira entre os ecossistemas naturais e os humanizados. Essas zonas de fronteira tornam-se mais propensas à transmissão de agentes patogénicos de espécies selvagens para as domésticas, incluindo para o humano. Por exemplo, nessas áreas de fronteira, os animais domésticos podem entrar com mais probabilidade na floresta à procura de alimentos, onde encontrarão espécies selvagens.

Também Ricardo Rocha destaca a importância da desflorestação e da destruição de habitat em todo este processo, nomeadamente por tornar mais provável que os humanos acedam a zonas que tradicionalmente não utilizam. Alguns dos exemplos são na Amazónia, na floresta do Congo ou em toda a zona da Indonésia. “Aí, podemos encontrar vírus novos, doenças novas e diferentes agentes patogénicos que podem vir a ser zoonoses. Depois, se isso vai ou não dar origem a uma pandemia, isso já não se sabe, mas as doenças emergentes estão associadas à desflorestação de habitat naturais e à intrusão do espaço natural para extracção de madeira ou de outros recursos, como carne”, nota o biólogo que investiga como as comunidades biológicas reagem às alterações de habitat naturais.

Do aumento da população à deslocação global

Na University College de Londres, a equipa de Kate Jones tem investigado as relações entre a biodiversidade, o uso da terra e as doenças infecciosas emergentes. “Provas sugerem que, no geral, as doenças infecciosas estão a surgir a um ritmo crescente, embora isso não seja fácil de quantificar”, escreve num documento que organizou com a sua equipa sobre esta temática. A maioria dessas doenças são zoonoses.

Numa recente análise citada pelo site da revista Nature, o grupo de Kate Jones sugere mesmo que populações de espécies conhecidas como sendo hospedeiras de doenças transmissíveis a humanos estão a aumentar à medida que a paisagem muda de natural para urbana e que a biodiversidade diminui. Nessas populações estão incluídos mais de 140 mamíferos, como morcegos, roedores e vários primatas. A análise compila mais de 3,2 milhões de registos de vários estudos ecológicos de diferentes zonas do mundo.

Além da destruição de habitat, há vários factores que têm contribuído para o aumento da probabilidade de aparecimento e expansão de zoonoses. Uma das partes dessa equação tem sido a das alterações climáticas associadas ao aumento da temperatura e de mudança na pluviosidade. Este mês, um artigo publicado na revista científica The Lancet alertava precisamente que as alterações climáticas estão a criar as condições ideais para a transmissão de doenças infecciosas. O aumento da deslocação de bens e pessoas pelo planeta também tem tido peso na conta final, bem com a subida da população mundial ou a transformação de terras para uso agrícola.

E que zoonoses estão associadas a alterações climáticas? Ricardo Rocha indica que pode existir uma ligação com as doenças associadas a mosquitos, porque certas zonas que não eram favoráveis à ocorrência desses insectos passam a ser. Já associar directamente as alterações climáticas a pandemias é mais difícil, indica o biólogo do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade do Porto. “À partida, não se pode dizer que uma pandemia tem uma relação directa ou que foi originada por alterações climáticas”, nota, salientando que as mudanças no clima fazem parte da tal equação com vários factores. “Aquilo que posso dizer é: as alterações climáticas têm influência na migração e distribuição de aves e o H5N1, que é um vírus da gripe das aves, passou de aves migratórias para aves em cativeiro [e pode causar doença em humanos e outras espécies de animais]. Este é um dos vírus com maior potencial pandémico.”

Já Jorge Palmeirim avisa que certas doenças podem mesmo voltar a Portugal, como a malária, que já foi endémica no país e é transmitida por mosquitos: “Se o clima continuar a aquecer, a probabilidade de a malária voltar é grande.”

O diverso grupo dos morcegos

Neste momento, enfrentamos ainda um coronavírus que, provavelmente, terá tido origem em morcegos. “O parente mais próximo de um vírus mais semelhante [ao SARS-CoV-2, que chegou até nós] é um vírus de morcegos. Há uma probabilidade razoável de ter tido origem em morcegos”, nota Jorge Palmeirim. Num artigo científico disponibilizado na revista Science of the Total Environment, refere-se que os morcegos foram a provável origem zoonótica de vários coronavírus, incluindo do SARS-CoV-1 e o SARS-CoV-2. Aí, sugere-se uma ligação desses dois vírus às alterações climáticas e a mudanças de distribuição de morcegos.

Devido a esta associação, criou-se a ideia de que os morcegos são um grupo particularmente propenso a albergar agentes patogénicos que passam depois para o humano. “Isso não é verdade! Os morcegos são um grupo diverso e com muitas espécies, mas a probabilidade de uma das espécies albergar um agente patogénico para o homem não é maior do noutros grupos de animais.”

Ricardo Rocha estuda morcegos tropicais e diz que é preciso ter em consideração que existem mais de 1400 espécies e que o vírus mais próximo do SARS-CoV-2 foi encontrado num género muito específico de morcegos, o Rhinolophus. “Neste caso, não podemos falar de morcegos como um todo, da mesma forma que não podemos falar de primatas como um todo”, nota o biólogo. “Os humanos são primatas e os lémures também, mas aquilo que é uma doença num lémure não é num humano. O mesmo acontece com os morcegos.”

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Ao se alimentarem de mosquitos, os morcegos cumprem um importante papel de biocontroladores Benedicte Kurzen/Reuters

Mas há algo ainda que se deve ter em consideração: ao comerem mosquitos, os morcegos têm um importante papel ao nível de doenças como a malária. “Com as alterações climáticas a criarem condições propícias à propagação de malária, é importante que haja animais que funcionam como biocontroladores de mosquitos vectores da doença. Além disso, ao se alimentarem de insectos, também podem ser uma ajuda no controlo de pragas agrícolas. “No contexto de alterações climáticas e de escassez de alimentos, não queremos perder alimentos para pragas.”

O biólogo pede ainda que notemos que, muitas vezes, quem passa os agentes patogénicos para os humanos são os animais domésticos, que interagem com os morcegos. “Uma das formas de as doenças saltarem a barreira das espécies é através dos animais que temos em nosso redor – dos que consumimos ou que temos em casa”, realça. “Se temos um gato em casa que sai à noite para caçar roedores ou morcegos, tem de se ter em consideração que os roedores e os morcegos são grupos particularmente importantes em caso de zoonoses.”

Zonas a ter em atenção

As zoonoses podem surgir em qualquer zona do mundo, mas nos últimos tempos muitas têm vindo de África e da Ásia. “África e Ásia parecem ser continentes com mais potencial de produção de zoonoses”, destaca Jorge Palmeirim. “À partida, toda a região tropical [tem potencial], porque tem mais diversidade de espécies e ecossistemas, bem como mais espécies selvagens com mais potenciais zoonoses e que podem ser facilmente transmitidas ao homem.” Já Ricardo Rocha alerta que as zonas de fronteira, em particular de florestas tropicais, ou zonas onde a taxa de desflorestação seja mais alta podem ser mais propensas ao surgimento de zoonoses.

Tendo tudo isto em conta, o biólogo sugere que é necessário caracterizar melhor os ecossistemas. Propõe ainda que se deve olhar para a saúde de forma mais holística, seguindo o conceito de uma saúde global, em que se deve ter em atenção ao mesmo tempo a saúde dos ecossistemas, a dos animais e a das pessoas – isto como esferas que se sobrepõem e interagem umas com as outras. Acções de reflorestação ou de reintrodução de espécies são outras das suas propostas.

Jorge Palmeirim acrescenta que é preciso controlar os mercados de animais selvagens. “Se pensarmos nas transmissões de animais para homens, elas ocorrem quando há um contacto próximo”, frisa. Esse contacto pode acontecer quando os animais são capturados e usados depois na alimentação. “Precisamos de acabar com esse consumo.” Mas esta não é uma questão fácil, visto que há comunidades que estão dependentes da exploração de espécies selvagens, muitas delas em países pobres. “O primeiro grande passo é acabar com a pobreza. Em países da África, Ásia ou América do Sul, as pessoas têm tanta fome que, se aparecer um rato, comem-no.” É preciso então criar alternativas na alimentação, como para alimentos mais baratos nesses países. “Era muito importante que houvesse uma promoção de alimentos a nível local para as comunidades fossem ajudadas a produzir alimentos e não a extrai-los directamente de animais da natureza.”

Por sua vez, Ricardo Rocha acrescenta que seria importante reduzir o consumo de carne. “Se é verdade que [o aparecimento e transmissão de agentes patogénicos] são problemáticos nas espécies selvagens, são igualmente problemáticos ao nível das espécies domésticas que estão a ser criadas numa exploração de larga escala”, assinala o investigador. “Pode haver uma grande propagação de vírus numa grande quantidade de animais confinada num espaço pequeno.”

Para Jorge Palmeirim, é ainda determinante que os países mais ricos façam um investimento na própria saúde, bem como um controlo da destruição de ecossistemas. E, claro, é necessário controlar o aquecimento global, que é um grande potenciador de zoonoses. “Há muito investimento na componente das vacinas e do tratamento, mas isso não resolve os problemas do futuro”, considera. “Os problemas do futuro têm de ser resolvidos ao diminuir a capacidade de transmissão de zoonoses de animais selvagens para os animais domésticos ou para o homem.”

Afinal, resolvendo a actual pandemia, não estamos livres de outras no futuro, sublinha Jorge Palmeirim. “A probabilidade de haver uma pandemia pior do que esta é muito grande. Pode não ser para o ano, pode não ser daqui a dez anos, pode até nem ser daqui a 100 anos, mas sabemos que há zoonoses que poderão ser mais letais.”